7 de ago. de 2014

Você está pronto para ir até o final?




Por Priscila Pacheco


A volta no tempo nas lembranças do narrador, a coleta de fatos passados numa tentativa de reconstruir a própria identidade a partir de certos eventos. São marcas dos livros de Michel Laub, escritor gaúcho de 40 anos radicado em São Paulo, semifinalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura pelo romance A maçã envenenada, lançado em setembro de 2013 pela Companhia das Letras. Trabalho mais recente do autor, A maçã envenenada é o segundo livro de uma trilogia de romances de formação que começou com o Diário da queda (Companhia das Letras, 2011), e cujo terceiro título, ainda por vir, pode estar sendo escrito agora.



O processo de escrita, que tanto varia de escritor para escritor, nas palavras de Laub, “é um mistério”. Para encontrar uma voz própria, para descobrir uma história, para saciar uma necessidade de expressão – os motivos para escrever são tantos quanto são as histórias contadas. O diferencial, na múltipla e heterogênea produção literária vista hoje, fica por conta do que Truman Capote define como “o espelho da sensibilidade”: o estilo.

E o estilo, em Laub, é expressivo. Em A maçã envenenada, o autor se vale da estilística que marca a maior parte de suas produções até aqui. Na forma de relato, Laub lança mão de uma narrativa fragmentada, desde a disposição dos capítulos até a construção da trama, para criar a atmosfera memorialista que percorre o romance.

O livro conta a história de um jovem estudante que cumpre o serviço militar em Porto Alegre a partir de dois eventos históricos na década de noventa: o suicídio de Kurt Cobain e o genocídio de Ruanda. Tendo como ponto de partida a iminente vinda do Nirvana para um show em São Paulo, cerca de um ano antes do suicídio de seu líder, a narrativa se desenrola em pedaços – pequenos trechos da vida do protagonista que dão forma à colcha de retalhos que constitui sua trajetória no espaço do romance.

Como o suicídio de um ídolo e a tragédia pessoal de uma garota de Ruanda podem atuar no processo de formação da identidade de alguém geograficamente tão distante? A memória, aqui, tem papel central. Isso porque eventos dessa magnitude não afetam apenas os envolvidos, mas se espalham, alcançando aqueles que, à primeira vista, nada têm a ver com o acontecido. A fim de determinar os efeitos que catástrofes históricas podem ter na vida de um indivíduo, no singular, a investigação da memória desse indivíduo passa a nortear a narrativa – narrativa essa que são várias narrativas, costuradas, como a estrutura da própria memória.

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“Você está pronto para ir até o final?” – uma das personagens pergunta nas páginas iniciais. A interrogação pode ser um prenúncio para a história que vamos encontrar.

Em A maçã, como no Diário, todos os momentos da vida são derivados de um só, um evento-raiz que vai delinear todos os acontecimentos subsequentes da vida do personagem. E ele volta a esses momentos – a possível viagem a São Paulo para acompanhar o show do Nirvana, um relacionamento frustrado, a entrevista com uma sobrevivente da tragédia em Ruanda – na tentativa de estruturar uma relação de causa e efeito, a fim de traçar a sucessão de fatos que o fez ser o que é. Na narrativa de Laub, como em Borges, cada instante contém todos os outros e cabe à memória buscá-los, um a um, e organizá-los em uma sequência lógica.

O problema é que a memória não segue uma lógica. É falha e, porque seletiva, repleta de lacunas e distorções. David Shields considera que qualquer coisa processada pela memória é ficção; é o passado reescrito de acordo com o que sentimos. Em se tratando de uma obra de ficção, onde a memória nada mais é do que uma voz de narrador, essa definição pode não ser determinante, mas ganha em sentido à medida que acompanhamos a busca desse narrador.

Ler A maçã envenenada é entrar em uma narrativa em que estão presentes todos esses elementos – passado, memória, relato e os efeitos que tragédias passadas podem ter em acontecimentos por vir. O livro retoma o processo iniciado no Diário, de tentar compreender a formação da identidade a partir da sobrevivência a um evento traumático e o modo como a memória lida com isso.

O protagonista percorre suas lembranças em busca de explicações – em um contínuo de momentos, aquele que possa explicar o que o levou até o ponto em que se encontra, a decisão ou a causa para o curso de uma vida inteira. O narrador procura no passado e na memória a base de que precisa para explicar sua vida porque o passado, por mais inatingível, é tudo o que temos, sem conhecer o futuro e vendo o presente escapar por entre os dedos a cada segundo. Porque o passado é a matéria-prima da memória, e portanto nada mais natural que recorrer a ele para investigar a formação da própria identidade.

A questão crucial, nesse ponto, reside justamente na natureza falha e maleável da memória. É impossível reconstituir plenamente esses episódios e precisar de que forma eles interferem na vida do outro – ou mesmo na própria vida. Ao tentar estabelecer a relação que une os fatos passados com o momento vivido agora, o narrador busca uma explicação para o que pode muito bem ser inexplicável.

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Em dado momento, o protagonista de Laub se questiona: "O que a aparência, a sintaxe e o estilo de um texto dizem sobre quem o escreveu?".

É inegável a existência de um elo espaço-temporal entre passado e presente, entre o que fomos, o que somos e o que seremos. Mas, em meio a todos os acontecimentos que dão forma a uma vida, o livre arbítrio constantemente se confunde com o que foge ao nosso controle – e tentar reconstituir fatos passados exatamente como são em busca de uma coerência existencial revela-se uma tarefa utópica.

No ano em que o suicídio de Kurt Cobain completa duas décadas, A maçã envenenada nos põe a pensar no passado, a traçar o percurso de nossa própria existência. Nos diz que esse é um exercício que vale a pena – se praticado sem a pretensão de explicar o que não pode ser explicado.

A falha em encontrar uma explicação, porém, não apaga as virtudes d’A maçã. Longe disso, é possível que seja justamente uma delas: a admissão, nas entrelinhas, de que tal busca é vã. "Não é possível”, afinal, “voltar a ser ingênuo depois que você deixa de ser”
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