10 de dez. de 2011

A noite de Tatata

Por Por Jerusa Campani e Mariana Müller
Fotos Jerusa Campani e Mariana Müller


Entre noites gaúchas e parisienses, entre livros e festas de gala, óperas e boates, Tatata passou a juventude transitando, se divertindo e refletindo na parte escura do dia. Mas, assim como a rotina noturna dele mudou com o tempo, a noite da cidade também não é mais a mesma. A conversa, que seria em um bar de Porto Alegre à noite, acabou acontecendo em um café no fim da tarde de sábado. Em meio a declarações únicas e sentenças inegavelmente “Tatatianas”, aqui estão alguns dos motivos que levaram Tatata a ser um pouco menos Gente da Noite.

Minha vida é noturna, eu sou noturno

Eu sempre fui assim. Eu tive, quando criança, uma doença chamada terror noturno, que as crianças lá por um ano, um ano e meio acordam em pânico e ninguém sabe por que, nem a criança, nem os familiares. Eu sempre tive isso. E a partir daí eu sempre tive muita dificuldade para dormir e aproveitei essa insônia (que até hoje eu tenho, isso é um negócio incurável) para estudar. Estudar e me pôr em ordem para o outro dia. Se eu tenho um programa de televisão, se tenho uma entrevista especial eu faço tudo um dia antes, porque de manhã eu ainda estou muito lento. Vai da meia noite às 4h, 4h30min. Quando é final de semana eu posso ler da meia noite às 6h da manhã, normalmente. Normalmente.


As noites que hoje são recheadas, prioritariamente, com leituras e estudos já foram dedicadas à boemia. Desde cedo.


A noite em Porto Alegre na minha época de 16, 17 anos só tinha o Clube do Comércio. Então, eu e minhas irmãs só podíamos frequentar três noites por ano, que era o aniversário do clube, o Baile de Debutantes e o Reveillon. Em 1962 é que começa a primeira boate de Porto Alegre, de Carlos Heitor de Azevedo, chamado Crazy Your Habit. Então, depois que eu fui morar na Europa e na África, perguntei a um colega da faculdade de Direito, o Rui Sommer se a gente podia fundar uma boate nossa, ao invés de gastar tanto dinheiro na dos outros. Então nós fundamos o Encouraçado Butikin, quando eu estava me formando no Direito. Aí começou toda minha trajetória noturna.*


Na boate, inclusive cabia muito pouca gente. Era para quem era colunável, socialyte, sócio do Country Club, gente milionária e vários estrangeiros, milionários também, que passavam por Porto Alegre e iam. Esse é o conceito de boate, aqui, no mundo inteiro e no Rio de Janeiro. Depois desaparece tudo isso. Na boate só entrava quem era, a palavra não existia ainda, celebridade. E muito bem vestido.


Tanto que, se o porteiro saía, pedia demissão ou era posto para a rua, o problema era maior do que se tivesse faltado luz na boate. Porque quem selecionava quem entrava, era o porteiro. E conhecia todo mundo, o grupo era pequeno. Inclusive, 80% se conhecia.



No final da década de 60, a boate fecha. Para Tatata, junto com o Encouraçado, se vai o período glamoroso da noite porto-alegrense. A transformação do número 936 da Independência, que hoje abriga o Porão do Beco, é um exemplo disso.


Outros locais começaram a fazer discoteca, que era com bate estaca, não tinha show, nós só funcionávamos na base de show. Os artistas mais importantes de Porto Alegre, todos eles, sem exceção, Roberto Carlos, Os Mutantes, Maria Bethânia que ficavam quatro ou cinco dias fazendo show na cidade, passavam por lá.


Depois vem a massificação e a juventude. A primeira foi depois do filme Saturday Night Fever, o filme do John Travolta que abriu uma boate que era a cópia exata do salão de baile. Aí massificou. Aí eram locais imensamente grandes, com jogo de luz e era pra juventude.


A cidade que Tatata vive é um pouco maior que o seu bairro, o Santana. Uma cidade grande, mas nem tanto.


Porto Alegre é interior. Ela tem todas as características que não tem no Brasil. Porque na década de 60, estourava um sucesso de boate em São Paulo e Rio, Porto Alegre copiava. Entrava uma música em sucesso em Nova York, os comissários da Varig compravam os discos e já vendiam pro dono do Encouraçado Butikin.


Hoje não. Hoje baixa da Internet, é tudo igual, tudo massificado, não há decoração. A música é sempre a mesma e a quantidade de gente frequentando a noite é multidão. Em Porto Alegre tudo que é feito hoje tem de atrair multidão. Então é estádio de futebol, estacionamento de automóvel, pátio da FIERGS, Pepsi On Stage. E Porto Alegre hoje a noite é 3, 4 mil pessoas senão dá prejuízo. De preferência que seja em estádio de futebol que cabe muita gente, não faz calor e a segurança é mais certa.


E surgiu essa neurose da segurança. A classe média tem certeza de que vai ser morta e assaltada. Então cercam os aparta-mentos. Não saem de casa. Se morrerem lá dentro, nem bombeiro nem médico vai conseguir entrar. E todo mundo tem um monte de cachorros. E não passeiam com o cachorro, eles fazem as necessidades dentro de casa. Na minha época só tinha ca-chorro descendente de alemão, para a segurança, tinham dobermann, e raramente as mais senhoras tinham criação de pequinês. Tudo isso muda o perfil da cidade.


E ao invés de ir em festa, uma coisa que mudou muito o comportamen-to de jovens e de velhos (porque eu não estou em nenhum desses enquadramentos, nem jovem, nem velho) é o computador. Hoje as pessoas podem passar 24 horas por dia lá se comunicando. No meu tempo era sentado no murinho na frente de ca-sa conversando. Hoje é tudo pela internet. Pelas redes soci-ais, etc. Hoje a diversão é exclusivamente por computador.


Na minha época não havia a cultura da juventude. Não tinha essa de jovem adolescente pode fazer o que quiser, não era chique tomar porre. Na minha época jamais o pai emprestava carro para filho. Nós saíamos do Clube do Comércio, eu de smoking e minhas irmãs de vestido de gala pela Borges de Medeiros e nós voltávamos de bonde para casa. Era uma diversão fenomenal.


Rua da Praia, 1961/Crédito: Fotos Antigas RS

Na minha época de jovem, a diversão era muito cinema, principalmente seriados, filmes de mocinho, de superheróis, desenho animado e os filmes para adultos.


Eu ia tanto no cinema que chegava sábado e domingo e já não tinha mais filmes para ver. Havia milhares de cinemas em Porto Alegre, todos no centro.


A Rua da Praia era uma festa. Era cinemas, restaurantes, confeitarias.


Também era a diversão, principalmente para as mulheres, assistir a Missa da igreja Santa Terezinha das 10 às 11, porque todos os cadetes vinham na saída da missa querendo namorar as meninas. Chamava-se cadete todos os estudantes que vinham de outros lugares do país, principalmente cariocas, que estudavam no Colégio Militar. E eram completamente diferentes dos gaúchos, jeito, cara e corpo. Era um grande fornecedor de casamentos a escola militar, depois virou colégio. As minhas irmãs, minha mãe fazia uma roupa nova para cada domingo. Esses casamentos não vingavam porque era a maioria do resto do Brasil. E quem ia casar com 18 anos, morando em Maceió, Amazonas, Rio de Janeiro?


A noite de Porto Alegre não existe, sentencia Tatata. Mesmo assim, foi um programa chamado Gente da Noite que concedeu visibilidade ao seu lado noturno.
Esse foi um período em que eu não estava dando aula na PUCRS, na Famecos, aí eu aí eu que tive de baixar um pouco, porque eu dava aula até as 23h30min. Mas a minha vida é noturna, eu sou noturno. E aí que a televisão descobriu e surgiu o Gente da Noite, que durou 15 anos por eu transitar, conhecer e saber da noite de Porto Alegre.


Estavam fazendo a TVCOM, montando, dois anos depois resolveram fazer uma reformulação e então alguém, eu não sei se o Túlio Milman ou a Marion, alguém sugeriu meu nome. Eu nunca tinha sido RBS, malgrado a própria empresa porque eu comecei trabalhando lá, no programa que eu fiquei um ano, o Puxa é Gaúcha, depois passei para o canal 10. Alguém sugeriu o meu nome, eu não estava mais disposto a fazer televisão, estava fazendo doutorado na PUC.



E aí eu recebo o telefonema do Roberto Appel, me fazendo a proposta: Tatata vem amanhã aqui, que eu quero conversar contigo e já traz a carteira de trabalho. Eu que sempre fui funcionário público e tudo, né, mas foi assim, fiquei parado. E ele também não tinha tempo para perder, foi dizendo, nós montamos um programa, chamado Gente da Noite.


Mas trabalho na noite fora do período de insônia consome energias. Fica bem longe da diversão.


Programa profissional nunca é divertido. Divertido são aquelas pessoas que fazem tipo Gente da Noite em outros canais, nos canais pagos, e fazem propaganda. Comigo não tinha propaganda, dava muita mão de obra e pra fazer um programa de 30 minutos eu tinha que trabalhar de 3 a 4 horas. Então pra se divertir não é trabalhando. Quem assiste acha que eu tô fazendo festa. Não dá pra beber, não dá pra comer, não dá pra encher a cara e também não dá pra parar que é muito demorado. Eu fazia duas horas de fita, duas fitas de uma hora, para que se escolhesse bem as imagens, ver as entrevistas, para editar meia hora de programa.


Em televisão tu tem que manter a maior tensão possível. Em estúdio e em externa. Depois do café TVCOM eu fico totalmente exausto. Meus neurônios estão a mil por hora. Suga minhas energias físicas e mentais. Depois que termina o café eu relaxo mentalmente e corporalmente porque me sinto numa felicidade incrível.


Já que para ir estar na noite é preciso ser elegante, que belo relógio, Tatata.


Maravilhoso. Comprei no camelô em Capão da Canoa. Comprei 12. Um de cada cor, as cores do arco-íris. Você pode se vestir no camelô e ficar muito elegante.


E os homens não se arrumam mais em Porto Alegre. Não existe nenhum homem em Porto Alegre que se diga ser muito elegante. Os homens aboliram o terno, a gravata, e agora já há muito tempo é moda não fazer a barba. Tem vários homens, empresários que nem são tão jovens que fazem a barba uma vez por semana. Agora é moda o sujinho. Na minha época era uma afronta sair com a barba por fazer.





Mulher elegante nós não temos também. A diversifi-cação é tão grande que o que chamava atenção era mulheres distintas de famí-lias tradicionais. E hoje como as pessoas enriquecem muito cedo, e demais, as mulheres estão perdidas!


Os novos ricos de porto alegre são um desastre total. Porque têm dinheiro demais mas não tiveram tempo de aprender cultura, elegância, não têm inteligência. Então eles acham que dinheiro compra tudo. As mulheres usam vestidos que elas não têm a menor ideia de como carregar, penteados que viram na novela, jóias tão espalhafatosas que todo mundo acha que é bijuteria.


Hoje nas festas de casamento, há uma disputa entre os novos ricos de fazer nas ilhas do Guaíba. Porque fazer festa em clube já é bagaceiro. Pior é fazer festa e convidar gente estranha e fazer no salão de festas do edifício. É a morte. Então os ricos estão fazendo nas ilhas e as festas são ma-g-níficas.


Nem sempre são divertidas, porque tem um tipo de gente que não sabe transitar em festas. Quando tem chapéu é um terror, as mulheres brasileiras ficam com dor no pescoço porque não sabem andar de chapéu. Pensam que vai cair.


E o principal de tudo, para acabar esse assunto, é que os casamentos, hoje, duram um ou dois anos. Fui num de uma família fenomenal, mas não sabia o que dar de presente, para essa gente que tem tudo. Mas comprei o presente e mandei um ano depois. O casal já tinha se separado havia 6 meses.


São 18h20. Chega.


Tenho mais o que fazer.


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* O livro Sobre Porto Alegre, publicado em 1993 pela Editora da UFRGS, com textos de inúmeros autores traz um relato minucioso de Tatata sobre o Encouraçado. Esta é a capa do disco Encouraçado Butikin Discotech, lançado em 1976.


“Nada de espelhos, nem cristais como o Clube do Comércio, nem estofados em cetim. Seria um revival das caves francesas. Embora com vinte anos de atraso, a noite existencialista chegava em Porto Alegre.”


“Os frequentadores do Butikin chegavam às nove horas e dançavam até a meia noite, uma outra espécie chegava à meia noite e ficava até as três e, por fim, os intelectuais, jornalistas, artistas, e o leve aspecto maldito da noite se fazia presente. Às nove horas da manhã, o tempo ainda não havia passado nos porões do Butikin.”


“No rastro luminoso do Encouraçado, outras casas abriam: a Scavi, inspirado em ruínas romanas, trazia Norma Barroguel como cantora; Carlos Heitor, na Baiúca, continuava no sucesso; Héldio Macedo, revivendo os explendores dourados, abre o Barroco; Edmundo Rhian inaugura a Locomotiva, e os Marques, para encerrar o périplo noturno, fundam a Paraphornalia com Ronnie Von recém descoberto por Hebe Camargo em um programa de auditório.”


“ Alguns bebiam vodka, mas a família Johannpeter inaugura a moda do vinho branco alemão. Algo inaudito na noite, pois vinho era somente para jantares, pensavam os incautos. A partir de então, todos os vinhos da Alemanha passaram nas adegas do Encouraçado, como passaram Chico Buarque, Rita Lee e os Mutantes, Cauby e Ângela Maria, Helena de Lima, Simonal, Jorge Ben, e algumas desconhecidas, Simone e Gal Costa, vindas direto da Bahia, mas com um aspecto tão medonho que o proprietário contratou a equipe do Elifas Cabeleireiros para pés, mãos e cabelos.”


“As discotecas começaram a chegar. Sérgio Bini funda a primeira, a Looking Glass. A Crocodillu’s, abre no mesmo dia da estreia de Os embalos de sábado à noite com John Travolta, a idade também se abate sobre os frequentadores do Encouraçado. Já não há a mesma disposição nas danças. E as falências começaram.”

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