6 de jul. de 2011

As benzeduras e a cultura do bairro Lomba do Pinheiro

Por Cíntia Warmling

Localizar o Museu Comunitário da Lomba do Pinheiro parecia ser uma tarefa fácil, o endereço era: Estrada João de Oliveira Remião, 2874. Contudo, encontrar o número da casa não foi tão simples. As numerações não seguem um padrão, resultado da ocupação irregular que ocorreu ao longo das décadas no bairro e que marcou sua história. A casa onde fica o museu é uma das mais antigas, e uma das poucas no local com a numeração correta.

Glaci, que trabalha com ervas medicinais, e Gládis, que além de trabalhar com ervas pratica a benzedura/ Acervo do Museu Comunitário da Lomba do Pinheiro



O Museu da Lomba do Pinheiro foi fundado em 26 de março de 2006 e faz parte do Instituto Popular de Arte e Educação (IPDAE). Tem a proposta de ser um espaço de resgate da memória do bairro. O local onde funciona o museu já foi uma venda da família Remião, conhecido como o Armazém Vencedor, que funcionou até a década de 90. Seu proprietário, Osmar Remião, herdou a estrutura (uma construção do final do século XIX) de seu pai, João de Oliveira Remião, um dos mais antigos moradores e uma figura importante da história do bairro. Em uma das salas funciona o Memorial da Família Remião, uma grande incentivadora da construção do Museu. Conforme informações no site sua missão é “divulgar, preservar e informar a memória do bairro onde está inserido e de seus habitantes”. Uma das ações desenvolvidas pelo museu é a “Pesquisa da História Oral” e as “Rodas de Memória”. Uma das últimas pesquisas realizadas foi o resgate de uma prática muito comum do bairro, o uso de ervas, rezas e benzeduras como alternativas medicinais. Caracterizadas como patrimônio imaterial, o que engloba formas de expressão, comunicação e celebrações fortemente presentes no cotidiano da comunidade, vinculado ao seu território e fazendo parte das noções de sentido e identidade cultural do local.

A pesquisa, que durou um ano e três meses, foi coordenada pela historiadora Cláudia Feijó da Silva (também coordenadora do próprio museu) e contou com a parceria da faculdade de museologia da UFRGS. O primeiro passo foi encontrar benzedeiras dispostas a dar seus depoimentos sobre seus rituais. Foram realizadas duas reuniões com um grupo de oito benzedeiras (a primeira sobre a prática das benzeduras e a segunda sobre o uso de ervas) além de entrevistas individuais nas casas das participantes. “O museu comunitário tem uma diferença dos outros museus, que é justamente trabalhar com as memórias do bairro, muito pouco se tem de documentação da história desse bairro. A alternativa que a gente tem é o trabalho com a história oral, com a memória dessas pessoas” relata Cláudia Feijó. O principal objetivo da pesquisa foi realmente esse, registrar uma tradição oral que rapidamente seria perdida se não fosse documentada.

As benzeduras e a história do bairro
O bairro da Lomba do Pinheiro tem origens de um povo e uma economia rural. Suas terras foram distribuídas entre famílias portuguesas que cultivavam a terra e criavam animais, vendendo seus produtos no centro da cidade e no próprio bairro. Essas características rurais se mantiveram até meados dos anos 40. A partir da década de 50 é que o bairro começa a ser urbanizado, incentivado pela prefeitura. Nas décadas de 60 e 70, durante a época da ditadura, começam a chegar um número ainda maior de moradores, devido à expansão de Porto Alegre e a necessidade do Governo Militar de retirar desempregados e subempregados da zona de risco, onde estariam mais próximos a manifestações coletivas.

A falta de políticas públicas voltadas para o local ocasionou muitos problemas. Na década de 50 a prefeitura incentivava sua ocupação, mas não fornecia a infra-estrutura necessária e muitas famílias (migrantes vítimas do êxodo rural) se estabeleceram de forma irregular. Acabaram ocorrendo falta de recursos básicos, como saneamento e eletricidade. Essa falta de recursos deu início à organização comunitária do bairro, que sempre foi muito forte e presente. A instalação de luz elétrica, por exemplo, ocorreu graças aos esforços particulares de algumas famílias. A primeira associação, a Associação Comunitária dos Amigos da Vila São Francisco e Lomba do Pinheiro foi criada em 1957. Os moradores se reuniam em busca da regularização da área e de melhor estrutura. Hoje a Lomba do Pinheiro conta com 32 vilas, 60 mil habitantes e mais de 50 associações de moradores. A luta dessas associações continua devido aos problemas de estrutura e qualidade de vida que persistem no bairro. E que tendem a aumentar, já que o crescimento do bairro continua, principalmente devido ao alto custo de vida no centro da cidade.

Foi apenas em 1959 que o bairro foi criado oficialmente, e só em 1962 que ganhou o nome definitivo. Até a forma como era chamado no seu início evidenciava a desconsideração dos moradores do centro. O bairro era conhecido pela Estrada das Tiricas, um tipo de arbusto. No centro de Porto Alegre Tiriricas era o nome que se dava a ladrões que praticavam pequenos furtos, e logo a área foi associada a esse sentido pejorativo, trocando seu nome para Lomba do Pinheiro em seguida.

A prática de benzeduras e uso de ervas como alternativa medicinal também é uma consequência da história do bairro, principalmente do seu surgimento como uma zona rural. A maioria da população não tinha acesso à saúde e nem transporte para ir até o centro da cidade (as ruas eram de terra batida, não existiam linhas de ônibus e era rara a passagem de carros) o único meio que as pessoas conheciam para tratar doenças eram receitas que aprendiam tradicionalmente de suas famílias e de vizinhos.

Até no Armazém Vencedor, conhecido estabelecimento do local, a prática era comum. Conforme o trecho do texto Lomba do Pinheiro: Ontem e Hoje, autoria de Cláudia Feijó: “Osmar Remião havia recebido como herança familiar de seus avós um livro de receitas homeopáticas, manipulando e receitando os remédios para a população local. Até hoje existe no acervo do Museu muitos medicamentos homeopáticos de meados do século XX, que compunham esta 'farmácia alternativa' da família Remião.”

Dona Lourdes, que trabalha com o uso de ervas medicinais/ Acervo do Museu Comunitário da Lomba do Pinheiro

Esse costume ainda existe no bairro, e sempre foi repassado de forma oral, como cita Maria Ireny, uma das entrevistadas na pesquisa: “Eu aprendi uma ou duas benzeduras com a minha vó, vendo a minha vó benzer. Eu aprendi ouvindo, elas não ensinavam, a gente decorava e agora eu benzo.” Nos últimos anos as gerações mais recentes já não têm demonstrado tanto interesse em continuar essa tradição. A prática de benzeduras é normalmente associada a pessoas mais idosas. O Museu Comunitário da Lomba do Pinheiro, ao fazer essa pesquisa, buscou o resgate de uma tradição oral, muito presente na comunidade, e que se perderia rapidamente caso não fosse arquivada. Como afirma Cláudia Feijó: “Se a gente não registrar nesse momento fica cada vez mais difícil essas pessoas terem uma referência de passado.”

Outra ação do museu foi no dia da abertura da exposição: as benzedeiras participantes da pesquisa plantaram nos jardins do museu pés de ervas usadas por elas em benzeduras e receitas de remédios caseiros. As benzedeiras ficaram responsáveis de frequentar o museu para a manutenção das ervas plantadas no local. Um ato simbólico, de preservação da cultura.

Jardim criado no museu no primeiro dia de exposição/ Crédito: Cíntia Soares Warmling

Benzeduras: medicina alternativa e cultura
Hoje chamamos a Medicina Atual (a alopática, com embasamento científico) de Tradicional, métodos diferentes são classificados como medicina alternativa. Incluídas nessa categoria estão as benzeduras, rezas e o uso de ervas pesquisadas pelo museu. Sempre associadas a crenças e costumes de cada local, a medicina alternativa foi, e em muitos locais ainda é, a principal forma de tratamento de doenças, seja pela tradição, pelo baixo custo ou pela falta de acesso a outros métodos de tratamento. Atualmente a medicina alternativa (ou terapias alternativas) é resgatada no ambiente médico, não para contrapor os métodos alopáticos, mas para complementá-los. Sabemos que a medicina alopática foi uma grande evolução. Pesquisas farmacológicas e novas tecnologias foram primordiais para identificar e curar muitas doenças ao longo das décadas.

Na exposição sobre a pesquisa feita com as benzedeiras no Museu Comunitário da Lomba do Pinheiro um aviso, em letras grandes, dizia claramente: “Não estamos incentivando o uso de ervas para o tratamento de doenças, e sim trabalhando com essa alternativa enquanto saber popular e patrimônio imaterial presente nessa comunidade.”

Mesmo com esse aviso, profissionais de saúde, mesmo sem ter visitado a exposição, acusaram o Museu e a exposição de denegrir a Medicina alopática e estimular o uso da medicina alternativa como única opção de tratamento para doenças.

A pesquisa realizada merece ser compreendida da forma como foi orientada, como um resgate da história do bairro. Esse é o objetivo do Museu, identificar e preservar a cultura de um bairro muitas vezes negligenciado pelo poder municipal. Um local onde os próprios moradores sempre foram em busca dos seus direitos, e que agora, com o Museu, buscam uma identidade cultural e histórica. Como explica Cláudia Feijó: “Quando as pessoas têm uma referência do seu passado a auto-estima delas se torna diferente. Ela tem uma história de vida, ela tem uma história no lugar onde elas moram.”

Primeiro dia de exposição/ Acervo do Museu Comunitário da Lomba do Pinheiro

0 comentários:

Postar um comentário