16 de jul. de 2012

Arte a céu aberto – momentos da escultura pública em Porto Alegre

Por Bruna Linhares e Letícia Garcia

Mesmo despercebidas em meio à vastidão da cidade, monumentos públicos guardam um propósito: atravessar o tempo e nos lembrar de nosso passado. O Gaúcho Oriental e a Fonte Francesa, no Parque Farroupilha, são dois exemplos da materialização de acontecimentos importantes da cidade.

A Fonte e a França

Desde 1941, o chafariz integra
 um conjunto de monumentos
 do Parque Farroupilha / Foto: Letícia Garcia
Entre o Estádio Ramiro Souto e o Auditório Araújo Viana, no Parque Farroupilha, fica localizado um monumento que conta, através da sua existência secular, fatos importantes da história de Porto Alegre. A Fonte Francesa, também conhecida como Chafariz Imperial, formada por três módulos de ferro fundido onde se veem as estátuas de três crianças, carrancas e leões, é datada de 1866.

Nos seus quase 150 anos, ela já circulou por pontos importantes da cidade. Esteve na Praça Quinze de Novembro, em frente ao Chalé, chamada na época de Praça do Mercado. Em seguida, foi movida para o lado oposto do Mercado Público, próximo ao terminal de ônibus Rui Barbosa. Com a enchente de 1941, o chafariz foi transferido para o seu recanto atual.

A peça foi fabricada no nordeste da França, na região de Champagne-Ardenne, pela Fundição Antoine Durenne e trazida para Porto Alegre juntamente com outros seis chafarizes. Todos, com exceção do chafariz da Redenção, desapareceram da cidade no final do século XIX sem deixar vestígios. O fato de ser um único remanescente do período do Império é que confere à Fonte Francesa o seu segundo nome, o de Chafariz Imperial.



Durante o período da Belle Époque, Porto Alegre, junto com outras cidades da América do Sul, importava grande quantidade de peças decorativas especialmente da França.

– A França, no século XIX, foi um modelo de urbanidade em tudo: na arte, no urbanismo, na arquitetura. Tudo que era colocado na França virava modelo. E Buenos Aires, Rio de Janeiro, Recife, Montevidéu, trouxeram e copiaram isso, explica o pesquisador José Francisco Alves, curador do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), autor de Fontes D´Art au Rio Grande do Sul.

O país europeu era um grande produtor dos monumentos e chafarizes da época. As peças eram produzidas industrialmente, e encomendadas pelos governantes a partir de catálogos.

– As exposições universais também divulgavam essa indústria. Tinha os estandes lá na Val d’Osne, da Durenne. Eles iam lá, pegavam os catálogos, escolhiam e mandavam vir. Todos esses equipamentos urbanos começaram a ser de interesse daqui, porque era mais barato mandar vir do que fazer aqui. Então esses chafarizes, estátuas, vinham para ornamentar jardins, praças, edifícios, esclarece Alves.

As fontes cumpriam uma dupla função: além do embelezamento dos espaços públicos, eram usadas como distribuidoras de água potável.

– Só que a função delas como fornecimento de água potável durou pouco tempo. Curiosamente, logo após a chegada das fontes vem o abastecimento por cano, por encanamento, e então as substituiu. Elas perderam a função de distribuir água, complementa.

Os monumentos e a Redenção

Em 1941, devido à enchente que deixou embaixo d’água quase todo o Centro de Porto Alegre, a Fonte Francesa, então instalada próximo ao Mercado Público, de frente para o rio Guaíba, foi transferida para o Parque Farroupilha, junto ao Jardim Europeu. Os conhecidos “recantos” do Parque (Alpino, Europeu e Oriental) foram implantados exatamente nessa época, sob coordenação do arquiteto paulista Arnaldo Gladosch.

– Isso vem vindo lá do século XVII, quando estão fazendo uma série de parques na Europa, desde o Barroco europeu, onde tem esses jardins. A gente visita a Itália, Alemanha, Áustria e vai ver que esses lugares têm parques barrocos, que são feitos de vários recantos. Esses recantos normalmente têm fontes, estátuas, pérgulas, e uma série de diferentes temas, de diferentes motivos. Isso é uma estratégia para trazer um certo “mundo em miniatura” para dentro do parque, conta Charles Monteiro, professor adjunto de História do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS, autor de Porto Alegre: Urbanização e modernidade e Porto Alegre e suas escritas: histórias e memórias da cidade.

Produzido pela fundição Durenne,
 a Fonte Francesa chegou a Porto Alegre
 em 1866 / Foto: Bruna Linhares
As propostas de Gladosch foram um incremento ao projeto do arquiteto francês Alfred Agache, responsável por trabalhos de remodelação de São Paulo e do Rio de Janeiro e que, em 1929, foi chamado a Porto Alegre para que propusesse um novo desenho para o Campo da Redenção. Foi esse projeto que definiu as linhas centrais do parque.  A construção dos recantos, juntamente com uma série de monumentos que começaram a ser inaugurados no espaço, sobretudo, a partir de 1935, ano da comemoração do centenário Farroupilha e quando o Campo da Redenção passou a se chamar oficialmente Parque Farroupilha,  conferiram ao mais tradicional espaço público de Porto Alegre um ar eclético.

– Tem monumentos que são de vários momentos no tempo. E isso termina causando, naquele espaço, um certo ecletismo, mas esse ecletismo também é o traço daquelas concepções urbanas que estavam vigorando no final do século XIX, início do século XX, sobretudo, que é quando está se pensando no parque, que está se solicitando um projeto, esclarece Monteiro.
Hoje, a Fonte Francesa faz parte de um conjunto de 38 monumentos que existem no Parque Farroupilha, segundo informações da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam). As peças remetem às mais variadas épocas e a diferentes fatos históricos. Existem estátuas que fazem alusão à mitologia grega, como a escultura “O Menino da Cornucópia”, também conhecida como “O Menino Nu”, que fica próximo à Reitoria da UFRGS. A peça foi devolvida em janeiro deste ano ao parque, depois de uma restauração que iniciou em 2002, após sofrer depredações. Datada do século XIX e de provável origem francesa, a pequena fonte mostra um Tritão, mensageiro do reino de Poseidon, que sopra sua concha, de onde jorra a água.

Outras obras homenageiam personalidades políticas, como o busto de Francisco de Paula Brochado da Rocha, ex-secretário estadual, ministro, que participou da Revolução de 30 e da Campanha da Legalidade, ou o busto de Alberto Bins, primeiro porto-alegrense a se tornar prefeito de Porto Alegre, cargo que ocupou de 1928 a 1937.

O monumento-símbolo do parque, o Monumento ao Expedicionário, foi inaugurado em 16 de junho de 1957. É obra do escultor pelotense Antônio Caringi, que também criou a Estátua Equestre de Bento Gonçalves, localizada em frente ao Colégio Júlio de Castilhos, na Avenida João Pessoa, e a Estátua do Laçador, um dos símbolos da Capital, que está próxima ao Aeroporto Salgado Filho.

A ideia de construir um “arco do triunfo” no Parque Farroupilha foi lançada em 1946, pelo Correio do Povo, em alusão à participação brasileira na 2ª Guerra Mundial. Caringi foi o vencedor, concorrendo com outros dois escultores, mas o seu projeto causou discussões pela forma arquitetônica.

– É [um monumento] um pouco singular, porque, normalmente, os arcos do trinfo ou têm um pórtico, uma entrada, ou três; ali tem duas. É uma coisa única, observa o professor da PUCRS.

Junto ao Monumento ao Expedicionário foram colocadas peças que remetem a uma questão mais cívica, como o busto de Santos Dumont, patrono da Força Aérea Brasileira, o que transforma o espaço em mais um recanto diferente do Parque Farroupilha.

– Na frente, foram colocados bustos dos patronos das armas brasileiras. [Esse espaço] é um recorte do parque que não tem nenhuma relação com as outras partes, conclui Monteiro.

O Gaúcho Oriental

Segundo Francisco Alves, citando o pesquisador Arnoldo Doberstein, “’o gauchismo é um dos [elementos] que mais forte apelo integrador tem apresentado’, constituindo-se numa construção ideológica determinada historicamente. Na estatuária e marcos comemorativos, isso começa a se materializar principalmente a reboque das celebrações do centenário da Revolução Farroupilha – grande ‘oportunidade para o resgate do gauchismo e dos mitos regionalistas’” (A escultura pública de Porto Alegre: história, contexto e significado). Foi nessa ocasião que o Parque Farroupilha recebeu o Gaúcho Oriental, localizado ao lado do Viaduto Imperatriz Leopoldina, na Av. João Pessoa, esquina com a Loureiro da Silva. A estátua, também conhecida como “O Gaúcho”, “Peão de Estância” e “Gaúcho platino”, foi um presente da comunidade uruguaia residente em Porto Alegre pelo centenário da Revolução em 1935, mesmo ano em que o Parque recebeu seu nome e em que Porto Alegre foi presenteada com outras obras de imigrantes, como a estátua equestre do General Bento Gonçalves.

– O Gaúcho Oriental já é uma questão bem mais eclética, mas testemunha o trajeto histórico da nossa sociedade – uma sociedade composta por vários momentos de imigração, com vários grupos, várias etnias, comenta Charles Monteiro.
Gaúcho Oriental, de Federico
 Escalada, está na Redenção
 desde 1935 / Foto: Bruna Linhares
Obra do artista Federico Escalada, a estátua tem tamanho natural e é fundida em bronze, vertida pela Fundição Artística R. Vignali, de Montevidéu, segundo pesquisa de Francisco Alves. Retratando um peão campeiro, o Gaúcho Oriental evidencia traços e feições indígenas, com trajes que referenciam os usados pelos “gauchos” de toda a região platina, assim como alguns apetrechos, como o relho, as esporas e o lenço. O monumento demonstra simbolicamente a proximidade cultural entre o estado e a cultura uruguaia. Em pose descontraída, espontânea e natural, o gaúcho está apoiado num tronco, com o olhar distante num ponto à frente.

Sobre um pedestal de granito, a estátua possuía uma placa de bronze, já roubada, que dizia: “Gaucho Oriental/ Homenaje de La/ Colonia Uruguaya al heroico pueblo rio-grandense en el/ centenario farroupilha – 1835-1935”.  Ao longo do tempo, a escultura sofreu inúmeras depredações. As esporas e o relho foram furtados, e houve, inclusive, tentativas de levar a peça inteira. Na década de 70, com a construção do Viaduto Imperatriz Leopoldina, o Gaúcho Oriental ficou sob sua sombra.

– Onde ele foi colocado, lá em 1935, na Avenida João Pessoa, tinha vários monumentos, e ele era um desses. Então era voltado para uma avenida importante. Como construíram aquele viaduto, descaracterizou tudo, e ficou num lugar “breu”. Sem dúvida, teria que ser realocado. Os monumentos, de um modo geral, não podem ser remanejados, têm que ficar no lugar de origem, mas claro que existem as exceções, destaca Francisco Alves.
Obra foi presente da comunidade
uruguaia pelos 100 anos da
Revolução Farroupilha
Foto: Letícia Garcia

Em 2000, foi colocado ao seu redor um gradil de ferro, de forma circular, mas isso não impediu que, em 2008, fosse roubada a mão direita da estátua. O monumento foi restaurado, e atualmente encontra-se em boas condições de conservação.

Francisco Alves destaca duas características da obra: o uso de chiripá ao invés da bombacha, a vestimenta mais conhecida do estereótipo de gaúcho, e a inclusão da letra “E” na fivela do tirador, forma peculiar do artista se colocar na escultura. Escalada fez uma estátua-irmã do Gaúcho Oriental, “El Peón de Estancia”, com a diferença da postura de laçar da uruguaia, com laço na mão. Essa outra estátua está em uma praça pública de Montevidéu e seu protótipo está no Museu Del Gaucho y La Moneda. Esse peão anônimo (segundo Alves, uma exceção na estatuária pública) chegou a representar, por pouco tempo, “o espírito telúrico das tradições gaúchas e suas relações com a terra nativa para aqueles que passaram a formar mais adiante o movimento tradicionalista gaúcho” (A escultura pública de Porto Alegre: história, contexto e significado):

– Antes de existir O Laçador, os gaúchos nativistas, gostavam muito dela – comenta Alves.

O Gaúcho Oriental e o tradicionalismo

Apesar de não ser a primeira escultura de gaúcho da capital (a primeira é um monumento a Júlio de Castilhos de Décio Villares), Alves constata, em sua pesquisa, que o Gaúcho Oriental estava num dos primeiros programas de “Rondas Creoulas” organizadas pelo 35 CTG, em setembro de 1949, “quando foram depositadas flores junto ao seu pedestal pelo ‘piquete de campeiros cavalarianos’”. Décadas mais tarde, os tradicionalistas passaram a ter como símbolo mais representativo O Laçador, obra inaugurada em 20 de setembro de 1958 criada pelo artista Antônio Caringi, como já mencionado. O Laçador, trajando a pilcha (traje típico gaúcho) teve como modelo Paixão Cortes, que, com Barbosa Lessa, empreendeu pesquisas sobre o folclore do estado nas décadas de 60 e 70, o que contribuiu para a afirmação do tradicionalismo.

 – Esse Gaúcho Oriental é mais correto no sentido antropológico do gaúcho, inclusive o nosso, que é o que nós usávamos. Só que aqui [no Estado] a coisa padronizou mais por causa do MTG, diz Alves.

A figura do gaúcho tradicionalista começou a ser pensada por volta de 1870 e foi construída pela elite do estado, através de contribuições de diferentes culturas. As pesquisas de Cortes e Lessa contribuíram para que ela saísse da margem e se institucionalizasse, com ações do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), do Poder Público e da mídia. Através da música, literatura e historiografia oficial, a cultura regional passou a representar idealmente o gaúcho.  A construção da identidade pelo MTG se deu através de mitos e dogmas nem sempre baseados em fatos, mas que foram adotados como inatos da sociedade. A partir disso se estabeleceram os valores, trajes típicos e símbolos do estado. O Laçador, então, foi assumido como símbolo do gauchismo, reunindo os valores reverenciados pelo tradicionalismo, e foi instituído como escultura-símbolo do Rio Grande do Sul através da Lei Estadual nº 12.992. Comparando O Laçador ao Gaúcho Oriental, percebe-se as semelhanças na indumentária, como o lenço e o tirador. No entanto, O Laçador é uma obra monumental, ao contrário do Gaúcho Oriental, como afirma Francisco Alves:
O Laçador, de Antônio Caringi,
é a escultura-símbolo do
 Rio Grande do Sul
Foto: Ricardo Giusti / PMPA

– Ele foi feito para símbolo. Esse aqui não, é um gaucho “pachola”, como chamam, atirado; o outro é um Cristo [Redentor, do Rio de Janeiro], já foi pensado na sua reprodução. Tudo isso o Caringi pensou. Até é positivo, só que o Oriental é uma coisa mais autêntica.

Arte pública em Porto Alegre

Destacam-se dois momentos distintos do movimento da escultura pública em Porto Alegre, selecionados dentre tantos períodos que marcam essa arte na cidade. O primeiro é de seu princípio, no século XIX, com a urbanização “europeizada” da capital; o segundo é o da proliferação de homenagens ligadas ao gauchismo rio-grandense. Do primeiro momento, os chafarizes são o grande marco.

– Alguns monumentos são intrinsecamente bonitos, e outros testemunham essa trajetória da sociedade. No final do século XIX, com essas questões do crescimento urbano de Porto Alegre, a República, os crescimentos urbano e econômico de Porto Alegre atraíram muitos imigrantes. Uma série de artistas veio junto nesse movimento de imigração, diz Charles Monteiro.

São essas obras que vêm em número significativo em 1935, centenário da Revolução Farroupilha. Homenagens das comunidades israelita, sírio-libanesa, portuguesa e italiana estão espalhadas pela capital na forma de estátuas e obeliscos, como constatou o levantamento feito por Francisco Alves. O Gaúcho Oriental, localizado na Redenção, é desse período.

– Tem um período de crescimento urbano muito significativo, que é antes da guerra, de 1910 a 1914. Nesse período, a economia brasileira, e a do Rio Grande do Sul, mais especificamente, está em crescimento, e a capital drena um pouco dessa riqueza, e vai querer representar isso através de grandes obras. Obras públicas, algumas financiadas pelo governo federal, e outras privadas, diz Monteiro.

Exemplos disso são a reforma na Praça da Alfândega e a explosão da estatuária fachadista, com obras esculturais ligadas à arquitetura de diversos prédios. O pesquisador José Francisco Alves, curador do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) fala em seu livro A escultura pública de Porto Alegre: história, contexto e significado dos períodos de “surto escultórico”, no início do século XX e na década de 70, com o “milagre brasileiro”. Ele diz que as obras no espaço público são normais em todas as cidades do mundo, e estão muito presentes em Porto Alegre:

– É um status cultural da paisagem.

A escultura pública

Francisco Alves destaca: “Encarnar valores, fazer propaganda ideológica, e, sobremaneira, gerar polêmicas – especialmente quando ela é realmente entendida – são algumas das facetas da escultura permanente ao ar livre, seja em Porto Alegre ou em Nova Iorque [...]. Mas uma arte verdadeiramente pública é aquela que, se construída por ou para uma comunidade, age como um catalisador dos anseios, histórias e lutas dessa população” (A escultura pública de Porto Alegre: história, contexto e significado). Para além de abrigar a história de tempos, lugares e ideias, a obra de arte pública cumpre seu papel no encontro com a população, nesse movimento de fazer pensar o espaço em que se vive.

Para saber mais sobre escultura pública em Porto Alegre:
A escultura pública de Porto Alegre: história, contexto e significado, de José Francisco Alves (Porto Alegre, Editora Artfolio, 2004).
Porto Alegre: história e vida da cidade, de Francisco Riopardense de Macedo. (Porto Alegre, Editora da Ufrgs, 1973.)

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