16 de jul. de 2012

Boemia resiliente

Por Alexandre Miorim

Da viatura que fazia a ronda local, o brigadiano curioso quis saber o que rolava. “Um cineminha?!”, exclamou.

Foto: Divulgação

Deve ser muita sede por cultura para, numa noite de 6°C na capital gaúcha, cerca de 80 pessoas se reunirem para uma matinê ao ar livre no meio da Cidade Baixa. Mais que sede é uma ânsia, uma inquietação, um grito contido em razão da série de políticas que, se tinham como objetivo coibir a boemia no tradicional bairro de Porto Alegre, foram efetivas.

O espírito boêmio, no entanto, ainda reluta para sobreviver aos ataques bem articulados e impositivos que quase dizimaram o movimento local. Dezenas de estabelecimentos foram e permanecem interditados, desde metade de 2011, numa repentina e implacável intensificação da fiscalização municipal, por meio da Secretaria Municipal de Indústria e Comércio (Smic). Regularização de alvarás, reformas em estruturas e cumprimento de horários, adaptações em geral onerosas e burocráticas, estão sendo exigidas da parte dos bares e casas noturnas que querem funcionar na CB.


Ora, quem queria ordem e silêncio no bairro deve estar satisfeito. Não há mais bêbados mijando nas calçadas, tanta sujeira ao amanhecer do dia, aglomerações nas esquinas e toda aquela poluição sonora, descontrolada e desrespeitosa, que transtornava e tirava o sono de moradores. Com razão, muitos destes reclamaram o direito ao descanso durante a noite.

O sossego, enfim, foi alcançado, ou melhor, estabelecido, imposto. O toque de recolher também. Mas, com eles, uma sufocante sensação de cerceamento, de privação de outro direito: ao lazer. Ruas desertas, pouquíssimas opções aos frequentadores, horários para o fim da festa e uma pá de trabalhadores sem trabalho. Músicos, artistas, garçons, comerciantes, empresários, seguranças, taxistas, vendedores ambulantes, faxineiros, ou seja, toda uma cadeia profissional afetada pelas ações que, além de alterar o cenário cultural e turístico da cidade, terminou com a fonte de renda de muita gente.

Há quem afirme que a fiscalização se centrou apenas no bairro, tradicional para a atividade noturna de um público dito “mais popular”. É o caso do músico Ricardo Bordin, que encabeça uma série de manifestações contra a intolerância das medidas da Smic desde novembro de 2011. “Não vejo nada de fiscalização lá na Padre Chagas. Por que ela só acontece aqui?”, questiona, chamando a atenção ao prejuízo causado aos pequenos empreendedores, que têm dificuldades financeiras para agilizar as adequações.

O músico ainda argumenta que as medidas são inconstitucionais e convoca artistas, moradores e frequentadores do bairro à 2ª Caminhada Cultural em Defesa da Música Ao Vivo, do Trabalho e da Cultura, que ocorrerá em 15 de junho, com início previsto às 18h, na esquina da República com a Sofia Veloso. Segundo ele, o Executivo municipal está transformando, através da força policial, a cidade em um “cemitério cultural”. Conforme sua perspectiva, as intervenções são restritas à CB e se motivaram por um claro “moralismo eleitoreiro”, já que alguns moradores mais conservadores reclamavam do barulho e da insegurança.

Equilíbrio

Residente há três anos no bairro, o funcionário público Julio Gallas contrapõe a ala ordeira dos moradores. “É claro que o sossego e a paz no bairro devem ser respeitados, mas não é terminando com o movimento que se atinge isso. Pelo contrário, com as ruas vazias, a criminalidade tem até mais espaço e liberdade para atuar”, pondera.

Será que não haveria uma solução mais amena, consensual, que conseguisse contemplar de modo harmônico as posições, garantindo a segurança e os direitos dos cidadãos ao lazer e ao descanso? Uma metrópole com a diversidade de Porto Alegre, tida por alguns até como a “capital cultural do Brasil”, deveria conseguir, de modo democrático, solucionar o impasse.

Outras localidades de referência cultural conseguem comportar em suas complexidades urbanas a atividade boêmia de forma segura, saudável e atrativa, fomentando cultura, turismo e oportunidades de renda. São os casos de polos culturais como San Telmo, em Buenos Aires; Hampstead e Soho & West End, em Londres; Montmartre, em Paris; Tijuca e Lapa, no Rio...

Mas o que tem a ver cultura com boemia? Bem, foi na boemia porto-alegrense, outrora vibrante, que importantes artistas gaúchos se revelaram, não só na esfera da música, mas da poesia, do teatro, do cinema. Em canjas como aquelas do Marinho – agora fechado –, que Lupicínio Rodrigues, Túlio Piva e Bebeto Alves, artistas de diferentes gerações, se consagraram e influenciaram tantos outros, como Nei Lisboa, Renato Borghetti, Adriana Calcanhoto, Tonho Crocco. Em grupos artísticos que se apresentavam na rua, como a Terreira da Tribo e o Teatro Câmara, em plena repressão da ditadura, surgiram diversos talentos da dramaturgia, do cinema e da televisão. Da mesma forma, muitos escritores, romancistas e poetas encontraram seus primeiros leitores no movimento das noitadas.

Reação

Foto: Kiran Federico León
O “cineminha” que rolou a céu aberto em plena friaca e que surpreendeu até o homem de farda foi a estreia oficial do curta-metragem República de Ratos, dirigido por Beto Mattos e estrelado por Anselmo Vasconcellos, ambos presentes. O evento ainda teve a apresentação do músico Gustavo Telles, da Pata de Elefante, e contou com apoio da cervejaria Província, que distribuiu amostras igualmente geladas ao encarangado público presente. A atividade foi realizada em 9 de junho, na esquina entre a João Alfredo e a Miguel Teixeira, integrando o projeto Cidade Baixa em Alta, iniciativa da Associação dos Comerciantes do bairro. 

O movimento significa a reação por parte dos empresários locais preocupados com o novo cenário. O publicitário Tiago Faccio, da agência Woodoo, responsável pela articulação dos eventos do projeto, explica que os mais de 60 associados da entidade contribuem, com 150 reais mensais cada, para que sejam promovidas ações em prol da reabilitação da CB como bairro boêmio. Através do Facebook, milhares manifestam apoio às iniciativas e causas do Cidade Baixa em Alta.

Além da matinê a céu aberto, os organizadores do projeto haviam realizado, em 25 de maio, a ação “Esquinas Embriagadas de Cultura”, quando uma trupe de artistas circulou pelas ruas do bairro apresentando seus talentos musicais e circenses. Na oportunidade, foi distribuído a frequentadores, comerciantes e moradores do bairro o Manual de Boa Convivência, com dicas sobre um comportamento coletivo saudável e respeitoso.

Numa outra ação, três asilos que existem no bairro foram visitados, em celebração ao Dia dos Namorados, com apresentação musical e distribuição de rosas para a alegria dos velhinhos. Tiago ainda revela que está sendo organizado um “Piquenique cultural”, para o início do próximo mês, aproveitando o espaço do Museu Municipal Joaquim Felizardo, com sebo de livros, estantes coletivas, música e teatro.

“Queremos dar as mãos a comerciantes, moradores, frequentadores e trabalhadores para o início de uma grande caminhada, que resgate o polo cultural que a Cidade Baixa já foi um dia”, promete.

0 comentários:

Postar um comentário