11 de dez. de 2011

Clarice Falcão e as tortas de amora

Por Bruno Cobalchini Mattos
 

Há algo de profundamente perturbador no ato de assistir ao vídeo em que Clarice Falcão interpreta Uma canção sobre o amor, ah o amor.... O vídeo de produção caseira retrata a garota carioca vem chamando a atenção no YouTube por ter acumulado, em menos de um mês, quase um milhão de visualizações. Atriz por profissão, Clarice nunca havia trabalhado como cantora até então. A jovem possui breves passagens por novelas da Globo, mas sempre em papéis de coadjuvante – sua ocupação não justifica, portanto, a visibilidade que o vídeo vem adquirindo.




À primeira vista, o caso parece assemelhar-se ao da menos-que-medíocre Mallu Magalhães que, alguns anos atrás, tornou-se talvez o primeiro fenômeno da música “independente” (no sentido de, à época, não estar associada a nenhuma gravadora ou rede de distribuição de conteúdos) na Internet – e de fato as comparações já vêm sendo feitas. No entanto, uma análise um pouco mais cuidadosa nos revela uma série de diferenças entre a sua autora e Mallu.

O mais relevante deles é talvez o conteúdo de suas composições. Enquanto sua antecessora trabalhava com temas amenos, ou até mesmo esvaziados de sentido (como era o caso da faixa Tchubaruba, em que Mallu apenas murmurava alguns ruídos aleatórios sem encontrar um respaldo técnico que justificasse a paciência do público), Clarice nos apresenta uma letra composta por frases simples, mas de implicações nefastas. Ela nos conta a história de uma garota que acaba de ter o seu namoro interrompido pelo parceiro e, por isso, apresenta uma hipótese de suicídio em que ela se atiraria pela janela sobre o seu amado com o objetivo de fazer com que os dois permanecessem juntos. Alguns trechos:  

“ai, só nos dois no chão frio 
De conchinha bem no meio fio 
No asfalto riscados de giz 
Imagina que cena feliz”

ou:  

“A gente ia para o necrotério
ficar brincando de sério
deitadinhos no bem-bom. 
Cada um feito um picolé 
Com a mesma etiqueta no pé”

E aí se torna evidente o abismo técnico que separa as duas intérpretes. Não que Clarice seja uma grande cantora – embora seja, indubitavelmente, superior à sua antecessora –, mas o uso que ela faz da própria imagem no vídeo é primoroso (herança de sua formação como atriz de teatro, possivelmente). Aparentando pouco mais de 20 anos e dona de uma voz suave, ela assume um tom de voz propositalmente meigo e expressões faciais ingênuas que contrastam com o teor daquilo que está cantando. Isso resulta em um humor espontâneo, originado na tensão de forma e conteúdo. Assim, sua música apresenta um caráter ao mesmo tempo divertido e assustador.

Por que assustador? Bem – acredito que, em alguma dimensão, todos sejam capazes de relacionar aquela histeria mórbida e momentânea com algo que já sentiu, ou que alguém muito próximo seria capaz de sentir. E a leveza de Clarice ao relatar a história provoca um estranhamento natural – como uma garota aparentemente tão inofensiva é capaz de relatar sentimentos como esse com tanta naturalidade?

No entanto, a faceta mais humana de toda a canção está no seu desfecho inesperado, quando, após relatar com prazer sensual diversos aspectos do seu ato de desespero, a cantora retoma as mesmas frases do início da canção e recria todo o enredo:  

“Quando eu te vi fechar a porta 
eu pensei em me atirar 
pela janela do 8° andar 

Invés disso eu dei meia volta 
e comi uma torta inteira 
de amora no jantar.”

Mais uma vez, vemos um sentimento verdadeiro humano: quem nunca teve um impulso violento diante de uma situação de contrariedade? Se, por um lado, é um tabu discutir em público estes lampejos de brutalidade, é justamente este mecanismo (que para a psicanálise é o famoso “superego”) capaz de redirecioná-los para outra ação que torna a vida em sociedade possível. Eis algo para se refletir por horas a fio.

E isso tudo em dois minutos de canção – enquanto Mallu, em meio de dois discos e um namoro com o também músico Marcelo Camelo exposto pela mídia ao longo de quatro anos, não suscitou mais do que algumas discussões sobre a aparentemente inesgotável capacidade da indústria cultural de empurrar produtos repetitivos e pré-fabricados para o grande público.

Clarice, por sua vez, parece ter encontrado uma nova maneira de explorar o audiovisual de baixo orçamento. A menina de rostinho bonito e voz meiga é um clichê da jovem música brasileira? Então, subvertamos o clichê. Já foi feito? Encontremos uma nova maneira de fazê-lo. Como resultado, tem-se uma canção engraçadíssima, instigante e, sobretudo, profundamente perturbadora.

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