6 de dez. de 2011

Uma história construída tipo a tipo


O Taquaryense é fruto do amor da família Saraiva somado ao comprometimento de funcionários e colaboradores

Por Anna Liza Precht

Fotos Anna Liza Precht

O prédio da Rua Sete de Setembro, centro da cidade de Taquari, é modesto. Passando pela pequena porta, entramos em um salão, onde podemos ver uma imponente máquina à esquerda, armários de madeira – repletos de gavetas, e alguns quadros na parede. Nesta oficina, é feito, semanalmente, o segundo jornal mais antigo do Estado em ativa circulação – o primeiro é a Gazeta do Alegrete, que circula desde 1882 – e o décimo do país. Com 124 anos de história, O Taquaryense é uma preciosidade do jornalismo nacional e, por que não dizer, do jornalismo mundial. Produzido inteiramente por tipos móveis, esse semanário é o único da América Latina que ainda utiliza esse modo de impressão. Lamentavelmente, os livros que tratam a respeito da imprensa gaúcha sequer citam sua existência. A sua importância no cenário estadual, no entanto, foi reconhecida em março deste ano quando O Taquaryense passou a ser considerado Patrimônio Histórico do Rio Grande do Sul. Após longa conversa com a neta do fundador d’O Taquaryense, com funcionários e atuais colaboradores, tentamos reconstruir a história desse meio de comunicação.


A origem
Taquari é um município do Rio Grande do Sul, que está a 96 quilômetros a oeste de Porto Alegre/RS. Foi a primeira cidade gaúcha de povoamento planejado pelo governo português. No final do século XIX, era polo agrícola, comercial e cultural do Vale do Taquari. Sua população era composta basicamente por açorianos, seus descendentes e escravos.

Segundo dados da Prefeitura Municipal, Taquari tem hoje aproximadamente 27 mil habitantes. Os adultos, entre 20 e 80 anos, somam pouco mais de 18 mil pessoas. Já os adolescentes, entre 10 e 19 anos, giram em torno de quatro mil. A base da economia é o comércio, seguido pela agricultura. Considerada berço da colonização açoriana da Região, Taquari preserva em sua arquitetura, em suas memórias e tradições um patrimônio cultural que extrapola limites territoriais. Toda a historia desse município está nas páginas do jornal O Taquaryense.

O nascimento do periódico
O jovem Albertino Saraiva saiu de São Jerônimo e foi para Taquari com o intuito de, nessa cidade, tornar real o seu sonho: fundar um periódico. O Taquaryense surgiu, assim, como um meio de comunicação em um pequeno município, quando o próprio Estado contava com poucos jornais.

Fundado em 15 de julho de 1887, O Taquaryense teve sua primeira edição publicada em um domingo, 31 de julho. Inicialmente, o jornal era impresso na oficina tipográfica de Tristão de Azevedo Vianna que, por esse motivo, tinha seu nome publicado no cabeçalho. Albertino precisava comprar a oficina para conseguir colocar, definitivamente, seu próprio nome como o de fundador do jornal. No começo, a impressão do semanário era feita a partir de um prelo. Albertino e sua esposa Joanna faziam o trabalho conjuntamente. Demorado e trabalhoso, o processo consistia na impressão de um exemplar por vez.

O Taquaryense sempre se empenhou em campanhas em prol da cidade de Taquari, e em causas nacionais como a abolição da escravatura e a implantação da República. Procurava destacar os acontecimentos da sociedade taquariense, assim como registrar os principais fatos nacionais e internacionais. O jornal também buscou documentar a vida cotidiana em suas páginas: alegrias, tristezas, emoções de qualquer tipo, relatando com responsabilidade os fatos, posição editorial que mantém até hoje. O periódico é muito representativo para a identidade cultural da região do Vale do Taquari. A maneira com que ele é feito e levado às ruas, o torna um veículo singular. A singeleza de sua montagem encanta e intriga: em pleno século XXI, numa era de explosão tecnológica e de instantaneidade, é quase inacreditável que ainda sobreviva o ideal de Albertino Saraiva, que viveu sua juventude no final do século XIX.

A neta do fundador, e atual representante da família na direção do periódico, Flávia Saraiva Dias o define em três frases: “O Taquaryense é amor, acima de tudo amor, amor integral de uma família à sua comunidade. Ler suas páginas é um voltar no tempo, através de uma edição ‘bordada’ por seus tipos gutenberguianos que sobrevivem até hoje e testemunham uma história de 124 anos. É uma luta diária compor, imprimir e manter esse jornal, mas nós vamos lutando e conseguindo”.

A Marinoni
No ano de 1910, Albertino Saraiva comprou uma rotativa: a Marinoni. A máquina, fabricada em Paris e importada, em 1909, por Caldas Júnior – fundador do Correio do Povo – foi vendida por quatro contos de réis. Até 1930, a Marinoni era movida por um motor a querosene, pois em Taquari ainda não havia luz elétrica. De acordo com o atual tipógrafo do jornal, João da Rosa Rodrigues, o referido motor foi o primeiro do Estado, feito especialmente para a rotativa d’O Taquaryense, por encomenda de Albertino Saraiva.

Atualmente, a rotativa imprime cerca de dezoito exemplares por minuto, levando pouco mais de vinte e cinco minutos para que os jornais dos atuais 460 assinantes fiquem prontos nas manhãs de sábado. Segundo Davi Saraiva Schäffer, atual colaborador do jornal, por volta dos anos 70, O Taquaryense contava com mais de dois mil assinantes. “Mas passou. Hoje os tempos são outros. A modernidade dos outros jornais é grande...”, conclui. Em Taquari, existem mais dois jornais além d’O Taquaryense: O Açoriano e O Fato Novo. Este último existe há dez anos e tem tiragem média de cinco mil exemplares por edição. Destes, 4.100 são distribuídos para seus assinantes em Taquari, Tabaí e Fazenda Vilanova.

A família
Passado algum tempo, os oito filhos homens de Albertino e Joanna foram iniciados e familiarizados com o jornal. Eles começaram a participar da composição e contaram com o auxílio de suas irmãs e esposas no trabalho de dobrar e colar os sobrescritos no jornal. Por muitos anos, esta tarefa foi realizada em encontros às sextas-feiras na residência da família Saraiva.

Albertino faleceu em 1928 e deixou sob a responsabilidade da sua família e dos amigos próximos a tarefa de levar adiante o trabalho de sua vida. Mário Saraiva, filho do fundador, assumiu a direção do jornal. A partir de 1947, o periódico passou à direção de Plínio Saraiva, João Carlos Bizarro Teixeira, Nardy de Farias Alvim e Pery Saraiva. Entre 1959 e 1962 houve uma paralisação na publicação, pois o diretor Mário Saraiva tornou-se deficiente visual e não pôde dar continuidade à sua tarefa. Em 1961, foi construído o prédio que até hoje abriga a oficina d’O Taquaryense.

Anos depois, Plínio Saraiva assumiu o comando do semanário. Visando preservar seu rico patrimônio cultural, ele tinha o hábito de coletar e encadernar os exemplares do jornal de dois em dois anos. Segundo João da Rosa Rodrigues, esta série de arquivos é a única coleção do estado que está completa, visto que a de A Gazeta do Alegrete foi em parte perdida, quando do incêndio nas suas instalações.

A impressão
Desde a sua fundação, O Taquaryense utiliza o processo de produção elaborado, em 1456, por Gutenberg – considerado o “pai da imprensa”. Assim, preserva seu formato artesanal de impressão, sendo feito através de tipos móveis (símbolos soltos, produzidos a partir de ligas metálicas que, um a um, formam o corpo do texto). O tipógrafo precisa de conhecimento, muita paciência e concentração na hora de compor as páginas. A montagem das frases funciona como um carimbo, pois as letras são espelhadas. Os tipos duram de 10 a 20 anos e, segundo o tipógrafo João, apenas uma empresa no Brasil os fabrica, o que torna seu custo muito elevado: por volta de 140 reais o quilo.

Os tipos são guardados na caixa francesa, que é subdividida em quadros: nos superiores ficam as letras maiúsculas, os números e as letras acentuadas, nos inferiores encontram-se as minúsculas, as pontuações e os símbolos. As letras mais usadas estão mais perto da mão, assim como no teclado do computador. O Taquaryense possui estilos variados de tipos, ornamentos, clichês, e outros elementos necessários para a composição do jornal. O clichê é uma imagem reproduzida numa placa de metal padronizada, utilizada para a reprodução de fotos, ilustrações, anúncios de publicidade, etc. É feito em empresas especializadas somente por encomenda, custa cerca de trezentos reais e demora a ser feito. De acordo com Flávia Saraiva Dias, por ser feito de forma tão artesanal, o jornal “pode ser comparado a um bordado, onde o tipógrafo é o artista e seu bordado é impresso no jornal”.


Os assinantes e anunciantes

O Taquaryense é vendido somente por assinatura (cerca de 60 reais por ano). Nilo Schäffer é aposentado e morador de Taquari. Assinando o periódico desde 1963, o julga uma historia viva: “Desde 1887 conta a história política e social do município, país, enfim, do mundo. Pelo fato, também, de ser um jornal imparcial, mais voltado para a cultura.”, completa. Muitos taquarienses mantêm seu vínculo com a terra natal através das páginas do periódico. Por isso, existem assinantes em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Uruguai, que recebem o jornal pelos Correios. A essas pessoas não importa a temporalidade da notícia, mas o prazer de desfrutar de um “pedaço” de Taquari. É o caso de André Ricardo Rambor, 50 anos, residente em Novo Hamburgo. Está fora da cidade há 35 anos, e segue assinando O Taquaryense: “Ainda é uma ligação com minha terra natal, uma forma de saber dos meus contemporâneos: quem casou, quem se formou, quem nasceu, quem morreu [...] É uma entidade centenária, e na minha opinião isso, por si só, já faz do jornal algo respeitável, também me dá uma certa satisfação fazer parte do Jornal, ou seja, como assinante ajudo a mantê-lo”, diz.

O jornal é composto por apenas quatro páginas, divididas em três colunas. Nas páginas centrais ficam informações e artigos diversificados e a publicidade – atualmente com 19 anunciantes profissionais liberais, em sua maioria médicos e advogados. O dentista Tales Fazenda comenta que anunciar no jornal não é uma ferramenta de marketing. “O motivo mesmo é que foi a maneira com a qual eu pude colaborar para que este patrimônio histórico, não só da cidade, mas do Estado, possa continuar circulando e não feche as portas”, esclarece Tales. Virgínia Pereira Bizarro e Silva é advogada e anuncia no jornal há mais de três anos. Começou a anunciar no período em que o jornal corria o risco de fechar e continua até hoje: “Acho importante preservá-lo, pois assim, mais pessoas podem conhecer seu formato e sua história”.

A parceria
A Universidade Integrada Vale do Taquari de Ensino Superior - Univates, de Lajeado/RS, se interessou em transformar O Taquaryense no Museu-Vivo de Comunicação. Para isto, propôs uma parceria, envolvendo a recuperação e manutenção do jornal. O projeto foi aprovado pela LIC (Lei de Incentivo à Cultura), que liberou 75 mil reais para a recuperação do prédio, dos móveis e do acervo do jornal – que seria restaurado, microfilmado e digitalizado.

No projeto, a Universidade ficaria responsável pela parte de logística e a família continuaria como proprietária, mas não precisaria se preocupar com as obrigações burocráticas. No acordo firmado em novembro de 2004, o prazo seria de dez anos. Mas, com apenas um ano e dez meses de vigência, a Universidade rompeu o contrato. Em setembro de 2006, alegando não haver mais interesse de sua parte, que o jornal “só dava prejuízos” e que a comunidade de Lajeado questionava o fato de a Univates financiar um jornal de Taquari ao invés de disponibilizar bolsas para estudantes carentes da cidade, o reitor quis romper o tratado intempestivamente. Tal decisão não foi aceita pela família Saraiva, que conseguiu adiá-la até o final do ano. Com isso, Flávia Saraiva Dias diz que o “jornal ficou como um barco à deriva”. Há tempo deficitário, O Taquaryense era ‘salvo’ pelos aportes financeiros de Plínio Saraiva. Como o rompimento do contrato aconteceu após o seu falecimento, os familiares não possuíam recursos para aplicar, imediatamente, no jornal.

A crise
Devido a uma queda brusca no número já reduzido de assinantes, a situação financeira do jornal se agravou. Por isso, foi realizada uma reunião com colaboradores, familiares ligados ao jornal e inúmeras pessoas da comunidade em dezembro de 2006. No encontro, ficou decidida a formação de uma comissão para angariar fundos, através de anunciantes e novos assinantes, e tentar resgatar os antigos assinantes que se afastaram durante a parceria com a Univates.

Mesmo querendo manter o semanário em circulação, a comissão não conseguiu reunir as condições necessárias para atingir seu objetivo, e o jornal deixou de circular em janeiro de 2007. Foi um primeiro semestre de muita batalha para encontrar uma maneira de O Taquaryense voltar às ruas. No dia 28 de julho de 2007, um jornal revitalizado retorna à circulação. Os assinantes ficaram satisfeitos com o semanário que, agora revigorado, “voltava a ser taquariense na sua essência”, nas palavras de Flávia Saraiva Dias. A partir dessa data, o jornal, embora pertencendo à mesma família desde sua fundação – fato inédito na história da imprensa nacional –, conforme Flávia “não é mais de uma família, de uma comissão ou de seus colaboradores, ele passa a ser de uma comunidade, do povo de Taquari”.

Os colaboradores
No decorrer dos seus 124 anos, O Taquaryense contou com o apoio de um devotado grupo de colaboradores. Flávia Saraiva Dias destaca nomes como o de Lauro Pereira Guimarães, taquariense, morador de Porto Alegre que, mesmo ocupado, encontrou tempo disponível para dedicar-se à solução de problemas jurídicos e, em alguns casos, financeiros do jornal. Já a atual colaboradora e redatora, Maria Ermi Bastos Praia é responsável pela revisão ortográfica, pela seleção de artigos publicados e, especialmente, pela criação da seção “Perfil”, na qual pessoas da comunidade são entrevistadas, fato muito bem aceito pelos leitores. Davi Saraiva Schäffer, tetraneto de Albertino, que também atua como colaborador, é o único representante da família a ter uma coluna fixa no jornal atualmente. Intitulada “Remexendo o Passado”, a coluna semanal traz notícias marcantes veiculadas durante os 124 anos do jornal e reflexões do autor a respeito delas.

A parte gráfica está, literalmente, nas mãos de João da Rosa Rodrigues – o Joãozinho. Atual tipógrafo, diagramador e impressor do jornal, é considerado um “herói” por Dona Flávia. O jornal só se torna real através de seu minucioso trabalho de montar tipo a tipo as páginas d’O Taquaryense. São 18 anos de dedicação a um sonho que, a princípio, não era dele, mas que hoje considera seu também. Outro empregado da oficina é Edson Claiton Lopes. Enquanto Seu Plínio era vivo, Edson foi entregador do jornal por 28 anos. Ele ficou afastado da função durante o convênio com a Univates. Agora de volta, todos os sábados, antes de fazer as entregas para os assinantes em sua bicicleta, ele dobra um a um os jornais já impressos, fazendo as marcações com um pedaço de madeira.

Idealista como o pai
Nascido em 1° de abril de 1903, Plínio Saraiva era o nono dos onze filhos de Albertino e Joanna. Seu Plínio, como era carinhosamente chamado, foi uma figura lendária no Vale do Taquari. Casado com Consuelo de Farias Alvim, teve dois filhos: Flávia Therezinha e José Carlos. Em 1947, tornou-se gerente d’O Taquaryense, função que exerceu até 1990, quando passou a ser editor e diretor. Ele esteve à frente do jornal por mais de cinquenta anos. Sempre que necessário, e quase sempre era necessário, ajudava a manter o periódico com os recursos de sua aposentadoria.

Plínio Saraiva completou 100 anos em de abril de 2003, dirigindo e editando o jornal. Apesar de todas as honras recebidas, Plínio costumava dizer que era 'jornaleiro' e não jornalista, uma vez que não possuía diploma. Sabendo da falta de apoio financeiro, comentava que o jornal não tinha esse apoio e era melhor assim. Dizia que era "um jornal pobre, mas sério". Aos 101 anos, Seu Plínio continuava a escrever com facilidade. Ia para o jornal cedo da manhã, sempre engravatado. Essa era uma das suas principais características. Maria Ermi Bastos Praia comenta que se comovia ao chegar às oficinas da Rua Sete de Setembro e se deparar com “aquela simpática figura: camisa de mangas arregaçadas, sem paletó, suspensórios e os dedos sujos de tinta preta, na lida de impressão do seu querido semanário. E com que orgulho e satisfação ele o fazia”, completa. Flávia Saraiva Dias lembra que seu pai costumava dizer que “Taquari era sua ‘Pátria’ e o jornal, o ‘Seu Irmão mais Velho’”.

Seu Plínio faleceu em nove de agosto de 2004 e trabalhou no jornal até sua última semana de vida. “O Plínio honrou, assim como os demais irmãos, o sonho de seu pai e fez dessa batalha, a sua vida. A história dele é linda e se mescla com O Taquaryense”, finaliza Davi Schäffer.


Obs.: Pesquisa realizada em conjunto com Gabriela Antunes.

2 comentários:

João Paulo da Fontoura disse...

Parabéns à jornalista Anna Liza, que trabalho bem feito, que documento!

João Paulo da Fontoura disse...

Parabéns à jornalista Anna Liza, que trabalho bem feito, que documento!

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