6 de dez. de 2011

Devagar se vai longe

Slow Food – Por que grandes mudanças podem começar por um prato de comida

Por Daiane de David


Para o Slow Food, a conscientização alimentar passa pela experimentação dos mais variados alimentos/Crédito: Andy Ciordia

Atualmente, palavras como eficiência e rapidez são máximas que a maioria dos indivíduos buscam alcançar. Esse ritmo industrial contamina não apenas o ambiente de trabalho, mas muda hábitos simples, como o ato de alimentar-se. Reunir a família ou os amigos para uma refeição feita em casa, preparada com ingredientes saudáveis e degustada sem pressa tornou-se um evento raro, quase sempre relegado aos finais de semana. Enquanto isso, as redes de fast food, com sua comida padronizada, permanecem cheias, saciando a fome de uma sociedade cada vez mais acelerada.

Cenário parecido foi o que o ativista alimentar Carlo Petrini observou, na metade dos anos 80, na Itália, berço de pratos famosos apreciados no mundo inteiro. Preocupado com o frenesi consumista, com a perda de algumas tradições culinárias e com a falta de contato das pessoas com a terra, Petrini iniciou pelo prato um movimento que foi ganhando, aos poucos, um contorno político, cultural, ecológico e agrícola. A essa convergência de ideologias e atitudes, ele deu o nome de Slow Food.

Criado em 1989 na pequena cidade de Bra, localizada ao norte da Itália, o movimento hoje é uma associação internacional, sem fins lucrativos, que conta com cerca de 100 mil sócios em 130 países. Sua estrutura administrativa é composta por uma Diretoria Internacional, responsável pela gestão do grupo, por um Conselho Internacional, que define as estratégias políticas, e por associações nacionais, que coordenam os projetos do Slow Food em seus países. Num âmbito menor, há os Convivia, núcleos locais de sócios, que organizam atividades, jantares e campanhas em prol do movimento e da culinária regional.

Dentre as bandeiras da associação, está a defesa de uma ecogastronomia ou gastronomia sustentável, que procura fortalecer a biodiversidade alimentar e uma agricultura mais igualitária. Seguindo essa ideia, os alimentos devem ser bons (capazes de satisfazer e estimular os sentidos), limpos (produzidos sem estressar a terra) e justos (preços adequados aos produtores e consumidores). “O ponto de partida do Slow Food está na valorização do alimento como cultura. Assim, o movimento entrou em estreita relação com lutas altermundistas pelo comércio justo, bem como com lutas socioambientais por modos de produção, produtos, produtores e consumidores ecológicos”, reflete a psicóloga Isabel Carvalho, integrante da associação.

A passos lentos
No Brasil, o movimento já vem atuando há alguns anos, firmando parcerias com governos e incentivando projetos de preservação ambiental. É o caso, por exemplo, das Fortalezas Slow Food, iniciativa que procura identificar alimentos quase esquecidos ou ameaçados de extinção e envolver pequenos produtores e entidades locais na sua preservação. No país, há cerca de nove Fortalezas, e a região sul, sobretudo a Serra Catarinense, conta com o apoio da iniciativa na luta pela conservação das florestas de Araucária e de seu fruto, o pinhão.

Em Porto Alegre, o Slow Food ainda dá seus primeiros passos. O Convivium da capital gaúcha foi inaugurado em agosto desse ano e os fundadores ainda estão estruturando as ações que serão desenvolvidas na cidade. Alexandre Baggio, professor de gastronomia da Unisinos e um dos responsáveis pelo grupo, garante que, até o momento, a aceitação tem sido maior principalmente entre simpatizantes do movimento e pessoas ligadas à gastronomia. “Isso deve aumentar com uma maior divulgação e atuação”, completa.

Isabel avalia que a tradição da agricultura familiar e a consciência dos agricultores ecologistas em relação a uma produção limpa, boa e justa são fatores que contribuem para o fortalecimento do Slow Food na região sul. Brunno Endres Ardissone, dono da loja de produtos orgânicos Viver Bem Alimentos, localizada em Porto Alegre, revela, entretanto, que existe uma dificuldade em encontrar produtores orgânicos no estado capazes de suprir às demandas do movimento. “Eles são poucos e ainda não têm força suficiente para divulgar seus produtos”, afirma.

Os mais de cem itens produzidos na agroindústria familiar são vendidos na loja de Bruno, no bairro Tristeza/Crédito: Daiane de David

Slow Food na prática
Apesar de ainda não ser associado ao movimento – questão que pretende resolver em breve, Brunno e seus pais já praticam, há cerca de doze anos, o modelo agrícola, ecológico e alimentar defendido pela iniciativa. Além da loja, os Ardissone são proprietários de um sítio no bairro Lami, onde está instalada uma pequena agroindústria e plantações dos mais variados tipos de frutas e hortaliças. Segundo Brunno, essa rotatividade de espécies vegetais garante um solo sadio: “Assim como um prato saudável precisa ser o mais colorido possível, nós acreditamos que podemos aplicar essa ideia também à terra”.

Os Ardissone são os únicos produtores orgânicos certificados a atuar em Porto Alegre. Por conta dessa singularidade e da experiência acumulada, a família conhece como ninguém a realidade de quem se dedica a uma produção orgânica e sustentável. “Tem todo um trabalho e o custo de produção é altíssimo”, relata Brunno. No caso de uma plantação de morangos, por exemplo, é preciso cercar a área com redes para que os passarinhos e outros animais não se alimentem da fruta. A medida atrapalha a colheita e não garante o aproveitamento total da plantação. Como não se usam agrotóxicos, cerca de 40% a 50% da produção se perde por causa das pragas e de outros bichos.

O comerciante aponta para uma falta de interesse dos produtores locais em investir numa agricultura orgânica mais sustentável, mesmo com o incentivo e apoio do governo. “Eu vejo que os agricultores estão acomodados porque não há uma fiscalização real. Ela existe porque tem que ter, mas nem sempre vai ao pé da letra”, alerta. Atitudes como separar o lixo e reciclar embalagens são raras entre os produtores, mas o sítio Viver Bem insiste nessa questão – mesmo ela não sendo tão vantajosa para o bolso. “A gente prioriza embalagem de vidro e a sacola é feita de papel craft, que não passa por aquele processo químico de branqueamento. Não temos uma preocupação só com a alimentação, mas também com a embalagem. Reciclamos quase tudo”, salienta.

Esse respeito pelo meio ambiente também se observa na maneira como os ciclos produtivos são encarados. Cuidar da terra e valorizar o que ela oferece em determinado momento faz parte não apenas da filosofia dos Ardissone, mas do Slow Food como um todo. “Por que no inverno a natureza te oferece laranja e bergamota? Porque ali tem os nutrientes para tu não te gripares e conseguires aguentar o frio. No verão, ela te dá melão e melancia, que é para tu te hidratares”, exemplifica Brunno. Muitos agricultores, entretanto, preferem utilizar técnicas que estressam o solo e burlam essa sazonalidade, a fim de atender a maioria das demandas do mercado e conseguir um rendimento satisfatório.

Mitos e avanços
Engana-se quem pensa que, por conta de todas essas dificuldades, os produtos orgânicos saem mais caro. Brunno garante que nas feiras especializadas, nas cooperativas de produtores e nas pequenas lojas o produto possui praticamente o mesmo preço que um cultivado de maneira convencional. “Se tu fores numa grande loja, aí é bem mais caro, porque eles estão aproveitando que esse segmento está crescendo”, avalia.

Em relação aos críticos que dizem que um modelo agrícola contrário à produção em larga escala elitizaria o movimento, pois encarece os produtos, Isabel argumenta que “a produção em pequena escala não precisa ser elitizada. Este é um risco, mas não uma fatalidade. A produção massiva de soja no Brasil não resolveu o problema da segurança alimentar, pois é uma produção voltada à exportação e à produção de ração animal”. Alexandre acrescenta que o modelo defendido pelo Slow Food incetiva os pequenos produtores, até então esmagados pelos grandes. “À medida que disponibilizamos estes produtos através de ações que coloquem os consumidores em contato direto com os produtores, tanto o custo quanto o lucro tornam-se melhores para ambos”, completa ele.

Mesmo em vista da popularização de produtos cultivados de forma limpa, é preciso ser ponderado ao analisar o fato. “O consumo de orgânicos ainda não é uma cultura, mas uma moda. Quando o Globo Repórter faz um programa sobre o assunto, acabam todos os produtos que temos. Dali a duas semanas, as pessoas esquecem e volta tudo ao normal”, comenta Brunno. O que traz esperança ao comerciante e ao Slow Food é observar, entretanto, que, aos poucos, a sociedade está sendo conquistada pelo sabor marcante desse tipo de alimento.

Crédito: Daiane de David
Um exemplo é o retorno que os Ardissone recebem das escolas para as quais vendem seus produtos. Com base na lei No 11.947, sancionada em 2009 pelo governo federal, no mínimo 30% da merenda escolar deve ser comprada diretamente de agricultores familiares, sem licitação. Para os donos da Viver Bem Alimentos, a resolução só veio a contribuir para a causa dos orgânicos e para melhorar a qualidade de vida das crianças: “Antes dessa lei, as escolas eram obrigadas a comprar por licitação. E na licitação ganha quem tem o menor preço. Como a agricultura familiar e orgânica não passa por isso, tu não precisa ficar economizando nos ingredientes e consegue fazer uma comida realmente boa e saudável”.

A medida também vai de encontro a um dos projetos do Slow Food, o Educação do Gosto, que busca despertar em crianças e adultos uma conscientização alimentar. “As pessoas deixam de experimentar os orgânicos porque, às vezes, eles não são tão vistosos. As crianças, por não terem acesso a tais produtos, não criam uma memória gastronômica baseada em ingredientes naturais, saborosos e saudáveis. Cabe a nós incentivar este consumo e levar o alimento à mesa, às merendas escolares e realizar atividades de educação alimentar”, defende Alexandre.

Retomada de valores
Ao observar os cerca de 28 convivia espalhados pelo país, é interessante notar que o movimento Slow Food se estabelece, na maioria dos casos, em grandes cidades. Questionado sobre o assunto, Brunno relaciona o fato com uma perda, nos centros urbanos, de sabores e aromas naturais. “Se tu fores comprar um leite, tu compra ele na caixinha. Se tu fores comprar uma alface, ela já vem num saco. Se tu fores comer um frango, ele já vem cortado e embalado. O Slow Food está trazendo à tona todos esses valores que estão se perdendo nas grandes metrópoles”, reflete.

Nesse sentido, por mais hegemônico que seja o estilo de vida capitalista, baseado numa ideologia do it now, o movimento preconizado por Petrini segue, a passos lentos, mas firmes, sua caminhada rumo a um mundo mais solidário. “O movimento Slow alude a uma reumanização do tempo, seqüestrado por um modo de vida impregnado de aceleração e da hiper exploração do trabalho, cujo efeito mais evidente é uma avassaladora ansiedade improdutiva. O interessante é que isso nos faz desejar ambientes de trabalho e de convivência menos coercitivos e mais produtivos. E é nisso que parece residir o potencial transformador da iniciativa”, completa Isabel. Diminuir a velocidade, nesse caso, não significa ficar para trás, mas reconhecer, principalmente, que o modelo de vida atual não é o único nem o melhor.

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