29 de set. de 2015

Ventos de Agosto: a vida à margem do desenvolvimento





Por Caetano Braun Cremonini


Ventos de Agosto (2014), relançado em maio de 2015 no circuito de cineclubes brasileiros, leva o espectador a uma diminuta vila costeira no litoral de Alagoas que vê seu cemitério ser progressivamente engolido pelo mar. A comunidade, que vive da pesca e da economia do coco, é palco da história de Shirley (Dandara de Morais) e Jeison (Geová Manoel dos Santos): ela, uma moça urbana de Recife que pretende ser tatuadora, muda-se para o local para cuidar da avó; ele, um jovem que vive da pesca e do coco. Ambos se relacionam em meio às paisagens idílicas da costa alagoana.



O filme marca a estreia do jovem Mascaro na ficção, ainda que, durante a obra, essas fronteiras sejam continuamente nubladas. Autor de Doméstica (2012) e de Um Lugar ao Sol (2009), documentários que voltam suas atenções às estranhezas existentes nas relações sociais tipicamente brasileiras, o diretor jamais abandona o olhar etnográfico em Ventos de Agosto. Boa parte do desenvolvimento do filme se dá a partir das reações e diálogos dos reais moradores da pequena vila, aqui transformados em atores; o tom documentarista está sempre presente, ao vislumbramos a vida numa comunidade que tenta entender um novo mundo que chega.

O relançamento do filme se deu no dia 7 de maio e foi financiado pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura, visando alimentar aos cineclubes para que a obra chegue a outros públicos. O evento contou ainda com um debate posterior ao vivo com o diretor Gabriel Mascaro. Como qualquer tentativa de distribuição alternativa no Brasil, a iniciativa merece ser saudada.





Outro modo de experienciar o tempo



Ventos de Agosto é, sobretudo, um filme de atmosfera. Seu desenrolar é composto por fragmentos, cenas em que pouca coisa acontece, onde os personagens somente estão: Shirley expõe seu corpo banhado em coca-cola ao sol enquanto escuta punk rock; os rapazes da vila escutam uma canção romântica na noite outrora silenciosa; um estranho pesquisador (vivido pelo próprio Mascaro) captura o som dos ventos do local enquanto é observado pelas crianças da comunidade; uma velha fuma um cigarro de palha enquanto encara a escura noite alagoana. São cenas feitas a partir de tomadas estáticas, onde os seres humanos observam, escutam, esperam, tocam-se ou falam de modo breve. Numa primeira impressão, parece faltar o elemento que encadeia os acontecimentos numa história com início, meio e fim.
Ou seja, o filme está muito distante de uma narrativa clássica, na qual o roteiro é antes de tudo uma peça de cuidadoso desenvolvimento lógico, modelo levado à perfeição pelo cinema de Stanley Kubrick. O roteiro de Mascaro é francamente aberto e o filme é entremeado por acontecimentos aparentemente espontâneos, filmados de modo quase aleatório – por exemplo, a única atriz profissional do longa, Dandara de Morais, viveu algum tempo com a senhora que interpreta sua avó, gerando uma convivência que deu origem às cenas que retratam as duas juntas. A montagem que amarra o filme não o faz de modo a criar um produto final onde os acontecimentos iniciais estão na gênese daquilo que se desenrolará nas cenas finais; tudo parece, de certo modo, como uma sucessão de atmosferas do litoral alagoano.
Ao invés da incapacidade do filme de gerar e executar um roteiro narrativo bem feito, penso que há outros elementos que explicam esse desenvolvimento fílmico. Um que parece óbvio é a experiência de Mascaro como documentarista: Ventos de Agosto se assemelha, em diversos momentos, a uma filmagem etnográfica de uma comunidade esquecida. Mas, mais do que isso, deve-se procurar na própria cosmovisão dessa comunidade as marcas que o filme traz em seu desenrolar.
Em outras palavras, não vivenciamos aqui tempo da razão próprio da civilização ocidental, uma sucessão cronológica de acontecimentos que se relacionam e se resolvem logicamente. Experienciamos o tempo circular das comunidades tradicionais, expresso pelo próprio desenrolar do filme de Mascaro, semelhante às ondas do oceano que marcam a vida dessa comunidade litorânea. Numa analogia musical, ao invés da composição tonal de progressão rigidamente lógica, da qual a música de Bach seria um dos exemplos maiores, observamos uma espécie de composição modal ao redor de uma mesma atmosfera, na qual o tempo é produzido coletivamente pelas vozes que compõe o filme.

Assistimos à sucessão de cenas aparentemente desconexas que vêm e vão, alternando-se em seu grau de barulho e agitação: da calmaria contemplativa das belas paisagens, vamos à agitação da música pop ou ao estrondo das tempestades. A onda vem, a onda vai. Se há algo unificador, é o próprio movimento do mar, tão fundamental no modo de ser dessas pessoas.


Um tradicional atravessado pelo moderno
Com o argumento exposto anteriormente, parece que estamos somente diante de um filme que busca traduzir de modo mitificado os recantos de sociedade tradicional em meio à geleia geral da modernidade brasileira. No entanto, uma das principais potências de Ventos de Agosto é, precisamente, o vislumbre dessa comunidade tradicional cada vez mais atravessada pelo moderno.

Não se trata, aqui, da proletarização dos modos de vidas tradicionais, a saída do lulismo aos impasses sociais brasileiros. A localidade retratada nunca deixa de estar à margem do desenvolvimento, algo visto nas cenas em que crianças trabalham mecanicamente na cruel economia do coco – mais uma pérola na nossa coroa de fracassos educacionais. Ou nas infrutíferas tentativas de Jeison, ao encontrar um corpo desconhecido na praia, de buscar assistência policial. Seu lugar jamais é no centro do progresso – saliente-se aqui os múltiplos significados comportados por essa palavra – e sim à margem.
Todavia, essa comunidade esquecida pelo Estado é invadida pelas canções melosas pop, pelo punk rock que a tatuadora Shirley escuta freneticamente, pelos telefones celulares que só conseguem sinal num determinado ponto da praia, pela motocicleta de Jeison e, principalmente, pelo pesquisador que, cercado de aparatos, grava os ventos do local. Esse último personagem gera alguns dos momentos mais interessantes do filme, quando o tradicional vislumbra o moderno com estranhamento, fascínio e, por vezes, temor.
Assim, um dos componentes maiores do imaginário brasileiro – mais especificamente, os modos de vidas arcaicos que habitam uma natureza exuberante e extraordinária – é sutilmente desfeito: não há mais o intocado. Tudo é atravessado pela lógica de um capitalismo global, mesmo aqueles que vivem em outra experiência do tempo. A mesma comunidade que aparece abandonada pelo Estado é a que produz o coco que irá refrescar as praias do Brasil. Os mesmos habitantes que cantam a cantiga fúnebre para seus mortos olham com encantamento os artefatos técnicos do pesquisador de ventos. Esse é um mundo que vai sendo engolido, como o cemitério local vem sendo engolido pelo mar; mais do que uma constatação da mudança climática, temos aqui a construção simbólica desse moderno que vem tomando o espaço do tradicional. As tentativas dos moradores de construir muralhas ao mar tornam-se esforços inúteis, enquanto as ondas continuam a derramar-se sobre as tumbas.


Nesse aspecto, é Shirley, mais do que o próprio pesquisador vivido por Mascaro, a personagem que melhor representa uma analogia para essa obra: enquanto tatuadora, a jovem busca a produção de algo permanente em meio à efemeridade das coisas. Como Ventos de Agosto, filme que torna permanente um mundo que se esvai.

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