10 de dez. de 2011

A arte que brota da multidão

Por Caroline Berbick
Fotos Caroline Berbick


Centro de cidade grande costuma ser assim: gente com cara fechada por todo lado, todos andando apressados pra algum compromisso inadiável e urgente. Na verdade, no miolo da cidade, se enxerga o que se quer ver. Se absorve o que a sensibilidade permite absorver. A diversidade, a riqueza, a pobreza, o cheiro, o barulho, os empurrões, as cores... Tudo tão familiar e ao mesmo tempo tão exótico. Diversas realidades misturadas num lugar que é de todos. Um lugar que pode servir de passagem, de morada, de sustento, de palco, ou de tudo isso ao mesmo tempo.

Ninja comerciante


“A praça é de quem chegar primeiro!”, avisa Jorge, se preparando pra mais uma apresentação. Ele e Roberto passam a maior parte dos dias sentados no Largo Glênio Peres, esperando o momento certo para as duas performances diárias. Eles são artistas de rua. No meio daquela gente toda, inventaram uma arena onde eles são a atração principal. Já faz 15 anos que Roberto é o “tartaruga ninja” das redondezas do Mercado Público. Com o apelido de Michelangelo (o tartaruga que usava a faixa laranja) ele voa entre três arcos cravejados de facas. Pode parecer impressionante, e realmente é, mas a apresentação de mais de trinta minutos tem ainda mais atrações.

Na rua ele tem o tempo que quer, já no Faustão, teve trinta segundos. Ou noventa, contando as três vezes que participou do programa. Foi ali mesmo, perto do Mercado Público, que Roberto fez o teste e foi selecionado para o quadro Se Vira nos 30. Diante das câmeras, “a perna tremeu”, ele admite. E mesmo com o nervosismo, foi na segunda participação, saltando entre as facas, que ele levou o prêmio de quinze mil reais. Com o dinheiro, comprou a casa na Lomba do Pinheiro onde mora com a esposa e oito crianças: três filhos dele e cinco da irmã. “Achou que eu tinha tudo isso de filho?”, pergunta rindo. A espontaneidade e a simplicidade refletem o jeito como encara a vida. “E o Faustão, como era?” – “Ah, pedi pra mandar um beijo pra minha mãe e ele respondeu que aquilo não era programa da Xuxa.”


Roberto diz que aprendeu os saltos vendo filmes, principalmente os do Jet Li. Treinava no Parque Farroupilha, onde costumava se apresentar nos fins de semana. Mas agora mudou-se de vez para o Largo Glênio Peres, onde faz parte de uma comunidade bem típica do local. Policiais, vendedores ambulantes, todo mundo se conhece. Das dez horas da manhã até às seis da tarde, são várias as pessoas que passam e cumprimentam Roberto e Jorge, sentados em suas caixas de madeira. Têm também aqueles que vêm em busca dos produtos que eles vendem. Além de artistas, são comerciantes. Sabão, pomada de cânfora e misturado de ervas para dar disposição. Tudo isso ali em frente ao Chalé da Praça XV.


Jorge veio de Salvador há três anos. Chegando a Porto Alegre, trabalhou em uma padaria, mas o emprego não deu certo. Foi então que ele encontrou Roberto em um “inferninho” da avenida Julio de Castilhos, e agora os dois são grandes parceiros. Jorge também é conhecido como MC Jorjão. Compõe seus próprios funks e grava no estúdio do amigo Farcão, em Sapucaia do Sul. Mas ali no centro de Porto Alegre, ele é responsável pelas mágicas e pelos merchandisings do show. A performance dos dois é uma mistura de stand up comedy, polishop e cirque du soleil. Roberto chama a atenção posicionando os arcos e fazendo golpes de capoeira. Ele ameaça pular entre as facas várias vezes e grita para uma multidão que parece indiferente. Mas aos poucos alguns curiosos vão se acumulando ao redor, e tudo acontece com muita naturalidade.


São dois saltos por apresentação. O primeiro logo no início, pra cumprir com o prometido. Depois vêm as mágicas, as piadas e o tal merchandising. Pomada, sabão, preparado de ervas – tudo apresentado com muito bom humor e com amostras gratuitas para todos. Quase ninguém sai de mãos vazias. Dor nas costas, roupa suja e cansaço, todo mundo tem. Aliás, o que todos ali têm em comum é o que transforma aquilo tudo em espetáculo, em cultural popular.


Estátua que sente
A duas quadras dali, tem uma esquina que chamam de democrática, entre a Rua dos Andradas e a Avenida Borges de Medeiros. Fazendo valer a tal democracia, Alexander Maciel elegeu aquele cruzamento como sua “vitrine”. Imóvel em cima do pedestal, ele destoa de tudo que está em volta. Olha determinado pra um ponto fixo, prateado, brilhando abaixo de sol ou de chuva. Ele é estátua-viva há dez anos, desde quando chegou de Ijuí para aventurar-se em Porto Alegre.


Quando morava no interior do estado, Alexander era produtor de festas, trabalhava com sonorização. Já na capital, não tinha os mesmos contatos e as coisas ficaram mais difíceis. A primeira tentativa como artista de rua foi com um grupo de atores que faziam números de palhaço. Mas a timidez atrapalhou os planos de Alexander e a ideia de ser estátua-viva foi sugerida por um amigo.


“No começo era muito difícil porque as pessoas não conheciam meu trabalho. Tinha que dar o melhor de mim e não sabia lidar com aqueles que me provocavam”, ele admite. No primeiro ano de estátua-viva, não era raro ter alguém atrapalhando, querendo chamar a atenção ou empurrando o Alexander enquanto ele tentava se concentrar. Mas com o passar do tempo, seu trabalho foi reconhecido e se tornou tradicional nas ruas de Porto Alegre.

O primeiro personagem, ainda no Parque Farroupilha, foi de garçom. Depois veio o Laçador, Santos Dumont e o Fotógrafo. Com o surgimento dos novos personagens, vieram também novas técnicas de concentração. “Busquei auxílio espiritual, minha força interior. Hoje é bem mais fácil, não misturo problemas pessoais com a minha atividade”. Ali no Centro, ele não disputa atenção com tantos artistas como no Parque Farroupilha. No pedestal onde passa de três a quatro horas imóvel, tem o número de contato para a marcação eventos. Uma vez por mês ele é contrato para festas de 15 anos, formaturas ou feiras. Orgulhoso, ele diz que a troca de carinho com o público é muito recompensadora. “Hoje eu tenho reconhecimento e carinho. Gosto do que faço. Se não venho trabalhar eu sinto falta e as pessoas que passam por aqui também sentem”.


Cultura da rua
Incrustados no meio da cidade, eles fazem uma arte que dispensa explicações: do povo para o povo. Por uma média de trinta reais por dia, enfrentam diferentes temperaturas e até diferentes humores. Roberto, que pula entre as facas, já foi professor de capoeira e de vez em quando trabalha como segurança de uma creche, na Lomba do Pinheiro. Jorge não tem outro trabalho além das apresentações no Centro, mas sonha em gravar um cd com seus funks. Já Alexander pretende ser estátua-viva até o momento em que ele cansar de vez, e então poderá tentar o ramo dos eventos de novo. Mas todos consideram-se artistas e vivem da renda que arrecadam nas ruas, daquelas pessoas apressadas, que mesmo tão ocupadas, ainda precisam de um pouco de arte.

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