Por Manuela Ramos
“O mais fácil pra mim é o português. Eu escrevi um ou dois livros primeiro em castelhano, porque pensei que fosse mais fácil. Mas não é não”. Argentino por natureza, Iván Antônio Izquierdo é naturalizado brasileiro e vive aqui há mais de trinta anos. Apesar do sotaque carregado, todos seus contos são escritos em português.
Quando tinha três anos de idade, meu neto Francisco tinha um livrinho
de um autor creio que tcheco, que consistia em desenhos articulados que, ao abri-lo,
representavam, em relevo, animais e outras figuras. Ao abrir as páginas, as
figuras sobressaíam e se mexiam. Em cada página, junto ao desenho, haviam pequenos
poemas referentes a cada figura. As figuras eram uma vaca, uma aranha, um
fantasma e um morcego marrom. Francisco adorava abrir o livrinho na página do
morcego. Ele não percebia como tal, e nunca se interessou pelos versos
correspondentes. Ao abrir o livro, o morcego se levantava e abria as asas, como
se quisesse voar. Francisco achava, com razão, que o morcego era um pássaro.
Ele tinha visto muitos pássaros, e jamais um morcego. Mais de uma vez o levou
junto à janela do terraço, elevando o livro, para ver se o pássaro saia voando.
Nasceu em Buenos Aires, na
Argentina, em 1937. Influenciado pelo seu tio, que era médico, formou-se em
medicina pela Universidade de Buenos Aires, em 1961. Pesquisador da área da
memória, antes de virar cientista, Iván começou a escrever contos. Inspirado em
Jorge Luis Borges, foi aos 18 anos que se aventurou na literatura. Durante sua
vida acadêmica, os artigos viraram (bem) mais frequentes que as histórias. “O
artigo é mais fácil de escrever. Como ele é baseado em fatos, é só pegar um
papel e explicar”. Mas o prazer maior vem da ficção.
Voa, voa – dizia Francisco, sorrindo, como sempre.
Talvez tivesse pena de que o pássaro fosse tão feio, ou de que
estivesse preso, impossibilitado de deixar o livro.
“Tem menos diferença do que se
pensa. O texto literário vai te deixando levar mais pelos outros ou por teus
gostos e personagens. Tu acabas tendo de entrar na cabeça deles e pensar como
eles, tu muda tua personalidade para escrever. Já durante o ensaio, tem que
lincar as ideias e tentar publicar de uma maneira que todos entendam. Mas no
fundo é parecido. É pensar e escrever de uma forma que seja compreensivo para
entenderem as verdades e as ideias”.
Uma manhã, ainda sonolento, peguei, Deus sabe por que, o livrinho. Lá
estavam a vaca, o fantasma, a aranha. Não estava o morcego.
Ao contrário do texto científico,
o conto surge de uma ideia – até mesmo dos momentos mais estranhos. “Se eu
parar e pensar que tenho que escrever um conto, não sai. Tenho que estar
fazendo qualquer outra coisa para surgir uma boa história”.
Saí ao terraço a fumar um cigarro. O dia era cinzento e um pouco frio.
Sobre minha cabeça voava um pássaro, grande, marrom, bonito. Olhei para ele. Me
respondeu: - Piuuuu, piuuuu. Sua voz era alegre, como a de quem acaba de
descobrir a liberdade ou o amor. Deu dois ou três rápidos giros, com muita
elegância. Foi embora, e nunca mais o vi.
A arte de esquecer. “O livro veio
a partir de um cientista amigo meu me mostrar que o mais importante da memória
é o esquecimento. Eu já trabalhava com a memória e comecei a pensar que nós não
nos lembramos de quase nada. Nós perdemos a informação. Esquecer é importante.
Tem muito esquecimento na vida real. E isso é útil. Se fossemos nos lembrar de
tudo não ia dar certo. É necessário esquecer-se de algo para termos novas
memórias”.
“Para esquecer coisas negativas de nossas vidas temos que
empregar realmente uma arte. Às vezes fazemos força para reprimir ou extinguir
um pensamento ruim. Essa força que fazemos é feita com arte. Tem que ser uma
força que não nos derrube no momento de fazê-la. Temos que sobreviver a ela,
tanto é que a fazemos para sobreviver”.
Iván não acredita no igual
reconhecimento de seus contos como o de seus artigos. E não se importa com
isso.
“E escrevo porque gosto”.
Dias depois contei isso para Francisco. Não achou, claro, nada de mais.
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