6 de dez. de 2011

Budrus: o ponto de vista do outro no conflito árabe-israelense

Por João Flores da Cunha
Imagens divulgação


“Eles nos disseram que o muro iria separar Israel da Palestina. Mas quando a construção começou, vimos que na verdade ele roubaria nossa terra”. Assim começa Budrus (2009), documentário sobre o vilarejo de mesmo nome situado na Cisjordânia, território palestino ocupado por Israel. A declaração é de uma moradora do local e resume a situação que desencadeou os eventos relatados no filme.

Em 2000, depois de encerradas – sem sucesso – negociações pela paz no Oriente Médio, teve início a Segunda Intifada (insurreição, em árabe), uma série de protestos violentos contra a ocupação dos territórios palestinos. Diversos ataques suicidas foram realizados por extremistas dentro de Israel, vitimando centenas de civis. Para conter o terrorismo, o governo do Estado de Israel deu início, em 2003, à construção de uma barreira militarizada na fronteira com a Cisjordânia. A ideia era garantir que nenhum palestino entrasse em Israel sem passar pelos postos de controle do Exército, ou seja, que ninguém portando uma bomba pudesse acessar o país.

O problema que deu origem ao conflito em Budrus foi que a barreira não seguiria exatamente a delimitação da fronteira entre Israel e o território palestino: em alguns pontos, ela invadiria o espaço árabe. Budrus seria uma das localidades mais afetadas pelo projeto: o muro passaria dentro dela, tomando parte de sua terra e cortando a sua ligação com o resto da Cisjordânia.
Os habitantes do vilarejo são muito ligados à terra. A região não é muito fértil, mas o clima mediterrâneo favorece a plantação de oliveiras. É delas que os moradores extraem seu sustento. Em Budrus, dezenas dessas árvores seriam derrubadas para a construção da barreira (constituída por um muro ou apenas uma cerca, dependendo do local). Além disso, ela ainda cortaria ao meio o cemitério do vilarejo e passaria ao lado da escola.

O discurso do governo de Israel, com o qual a maioria da população do país concorda, é de que o terrorismo foi reduzido por conta dessa barreira de segurança. Ainda que haja atenuantes nessa equação, o fato é que a violência foi reduzida a praticamente zero depois de sua construção. O muro tem grande papel em garantir a segurança de Israel, a qual está permanentemente ameaçada por seus vizinhos. Porém, ao ocupar militarmente a Cisjordânia, o país submete a sua população a abusos. É nesse equilíbrio que se dá a convivência entre árabes e judeus desde 1967, quando houve a guerra em que Israel tomou controle dos territórios palestinos.

Para protestar contra a situação, os moradores de Budrus escolheram a via oposta à da Intifada: a desobediência civil não-violenta. Eles organizaram uma série de manifestações pacíficas ao longo de meses, entre 2003 e 2004, para impedir o roubo de terra e a destruição das oliveiras. Aos poucos, a causa ganhou apoio e reconhecimento internacional. Israelenses ativistas da paz foram até o local e se juntaram às manifestações. A pressão e os contínuos protestos levaram a um redesenho do traçado do muro, que foi construído no limite da fronteira entre Israel e a Cisjordânia. Budrus conta essa história.

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Budrus tem uma limitação, que não é pequena: quem registrou os acontecimentos não foi a equipe de filmagem da diretora, a brasileira Julia Bacha. Tampouco ela esteve presente durante os acontecimentos. De fato, só ficou sabendo deles já anos depois de seu desfecho. Ela decidiu realizar um filme sobre a insurreição do vilarejo após receber gravações de pessoas que participaram dos protestos. A cineasta foi, então, até Budrus, onde falou com os principais envolvidos nas manifestações – e, partir dessas entrevistas, reconstituiu os fatos.

Na montagem, Julia Bacha acertou ao fazer a articulação entre as entrevistas e os registros da época: alguns moradores – que são os personagens do documentário – explicam o ocorrido enquanto vemos as ações que fizeram. Há imagens desde o início do conflito. O que vemos dos protestos em si são filmagens realizadas, em alguns momentos, por ativistas, e em outros, por profissionais que acompanharam os acontecimentos. A falta de material de qualidade é evidenciada pela curta duração do filme: cerca de 80 minutos.

Isso não significa dizer, no entanto, que Budrus seja um filme mal feito, ou que a narrativa esteja mal contada. É exatamente o oposto. Trata-se de uma história tão rica que os fatos se impõem sobre a qualidade do material.

Sintomático disso é o momento em que a filha do líder dos protestos decide agir. Ainda no início dos protestos contra o muro, ela consegue romper o cordão de isolamento imposto pelos soldados do Exército de Israel – que lá estavam para garantir que a construção fosse realizada. Ela entra em um buraco cavado por um dos tratores israelenses, que, impedido de avançar, desiste. A imagem remete a outra, muito mais famosa, dos protestos na Praça da Paz Celestial, na China, em 1989, do jovem se posta à frente de uma de fileira de tanques e impede que ela avance.

A qualidade da imagem não é boa – mas não precisa ser. Ela é tão poderosa que esse aspecto pode ser relevado. E funciona ainda como ilustração de um fato sobre os protestos, o de que eles começaram a ter efeito a partir da inclusão de mulheres.



Esse é um ponto central em Budrus: a união dos manifestantes, que se dá a partir da aproximação e do respeito ao ponto de vista do outro. Homens e mulheres, palestinos moradores daquele vilarejo ou de fora dele, e, principalmente, árabes e israelenses, se uniram por uma causa que consideraram justa: salvar Budrus. O que fica claro no documentário é o choque que os palestinos tiveram ao ver a seu lado ativistas israelenses. Um deles relata que nunca havia tido amigos judeus – na verdade, sequer conhecia alguém que não fosse soldado ou carcereiro.

Um dos líderes do movimento relata a surpresa que teve ao se ver pela primeira vez ao lado de um judeu contra os soldados israelenses. Esse palestino pertence ao Hamas, movimento extremista islâmico que não reconhece o direito de existência de Israel. Em Budrus, partidários do Hamas se unem a judeus, o que, do ponto de vista da construção da paz na região, é extraordinário. Um dos méritos do filme é mostrar esse processo de conhecimento e aceitação do outro enquanto ele acontece.

Há um momento em que os ativistas israelenses fazem um círculo protetor a alguns árabes que os soldados ameaçavam prender. Treinadas para não entrar em conflito com judeus, as forças do Exército de Israel ficam sem ação. Mesmo quem se importa pouco ou nada com o conflito do Oriente Médio deve se sentir tocado por essas imagens de alguma forma. É em momentos como esse que o filme se aproveita de seu apelo emocional: “moradores de um pequeno vilarejo vivendo sob ocupação resolvem um conflito por meio de resistência pacífica” poderia ser a sinopse.

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Julia Bacha afirma que, quando ouviu os primeiros relatos sobre Budrus, não acreditou. A diretora do filme diz que não conseguia entender como aquela história não tinha uma grande cobertura na mídia. Ela questionou um experiente jornalista americano sobre o assunto. Este lhe respondeu que, provavelmente, uma história como aquela não fazia parte da narrativa do conflito árabe-israelense da época em que ocorreu. Os acontecimentos de Budrus se deram no auge da Segunda Intifada, em que os palestinos e sua luta eram imediatamente associados ao terrorismo. Nesse contexto, uma história de resistência pacífica jamais teria cobertura midiática.

A diretora relata que ouviu, então, de uma psicóloga, a explicação sobre isso. Quando recebemos informações que desmentem as nossas crenças, nosso cérebro passa por um processo chamado de dissonância cognitiva – que causa dor. Para nos livrarmos dela, há duas alternativas: ou selecionamos as informações que confirmam a nossa visão, ignorando as que a desmente, ou as incorporamos e expandimos nossa narrativa.

É nessa segunda que Julia Bacha aposta em seus filmes. Ela acredita que essa expansão das narrativas – entendida como coleção de fatos que utilizamos para construir nossas crenças – pode causar “mudanças significativas” no mundo, a partir da aproximação com o outro e do conhecimento de seu ponto de vista. Também crê que o melhor jeito de fazer isso é contando histórias. Budrus transforma a nossa realidade, porque muda a imagem que temos dos palestinos – e mesmo dos israelenses – e nos dá uma visão mais ampla da complexidade do conflito.

A conclusão que a diretora tirou da conversa com o jornalista americano foi a de que a mídia tende a ignorar relatos que difiram radicalmente da visão do senso comum – para não provocar a dissonância cognitiva. Nesse sentido, há uma oposição entre o documentário e o jornalismo, enquanto narrativa da realidade. O próprio filme expõe esse conflito, ao mostrar imagens de um telejornal israelense, filmadas de trás das linhas do Exército. É evidente o contraste com as imagens feitas por ativistas, no mesmo momento.

Em Budrus, não há espaço para o maniqueísmo de uma divisão entre o bem e o mal, tão ao gosto do jornalismo. Há contradições – dos dois lados. O filme tem um viés pacifista, mas não deixa de mostrar a face mais dura do conflito. Há um dia específico em que a tensão chega ao ponto máximo e os embates entre manifestantes e o Exército israelense se tornam violentos. São imagens chocantes, como as de soldados agredindo mulheres, ou atirando com munição real. No meio da confusão, jovens palestinos abandonam a resistência pacífica e começam a atirar pedras.

Em outro momento, um ativista israelense afirma a alguns de seus compatriotas que “nada assusta mais o exército do que oposição não-violenta”. Em uma cena memorável do filme Munique, de Steven Spielberg, um integrante do serviço secreto israelense encarregado de eliminar líderes do movimento de resistência palestina fala a um de seus colegas: “Todo esse sangue volta a nós”. Nas últimas décadas na região, o que se conseguiu por meio da violência foi nada – apenas mortes e sofrimento para árabes e judeus. O caso de sucesso de Budrus sugere uma inversão dessa lógica da violência.

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O fato de as imagens nem sempre terem sido filmadas por profissionais não impede que elas tenham valor estético. Há uma cena em particular que deve ficar gravada na memória do espectador, tamanha a sua beleza e significação. Ao fim do dia mais violento de repressão das forças de segurança, vemos alguns manifestantes se dirigindo à barreira construída por Israel. O sol já se pôs, e a iluminação de que se serve a câmera é crepuscular. Os ativistas estão na contraluz, de modo que vemos apenas suas silhuetas. Enquanto caminham, eles gritam a mesma frase, repetidamente, ao ponto de parecer uma música: “We can do it” (Nós podemos). O uso do inglês, idioma que aquelas pessoas encontraram para se comunicar – dificilmente um árabe sabe falar hebraico ou um judeu sabe árabe – e a contraluz da filmagem impedem que identifiquemos aquelas pessoas. Serão moradores do local? Membros do Fatah ou do Hamas? Ou serão israelenses? A lição de Budrus é que a resposta para essas perguntas não importa. O que importa, e que o filme mostra, é o ato daquelas pessoas: quando chegaram à barreira, subiram na cerca e a derrubaram, abrindo um rombo em uma barreira construída para afastar povos.

Amós Oz, o principal escritor de Israel, costuma dizer que falta ao Oriente Médio a percepção de que o outro está ali para ficar. Nem os árabes nem os judeus irão se retirar daquelas terras – sagradas para a religião de seus povos e por eles ocupadas em diferentes períodos históricos. “Ambos os povos queremos um pedaço de terra que consideramos ser nosso”, resumiu Amós Oz certa vez.


A história de Budrus, de certo modo um microcosmos do conflito árabe-israelense, apresenta, se não uma solução para ele, um caso em que manifestações pacíficas foram bem-sucedidas. Ao relatar a realidade, o filme de Julia Bacha transforma-a, no sentido de que expande a sua narrativa sobre o conflito e muda nossa visão sobre ele. O que mais se pode pedir do cinema?

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