19 de ago. de 2011

Literatura e história na teledramaturgia brasileira

Por Rafaela Redin


Se existe algo que faz parte da cultura da população brasileira que possui televisão, é a novela. E uma delas, que está em exibição, chama a atenção tanto pela qualidade técnica, quanto pela ligação com a literatura e a história. “Cordel Encantado” da Rede Globo, escrita e dirigida pela dupla Duca Rachid e Thelma Guedes, apresenta Açucena (Bianca Bin) e Jesuíno (Cauã Reymond), jovens que são apaixonados desde a infância, mas que desconhecem suas verdadeiras origens. Ela é uma princesa, filha do rei Augusto (Carmo Dalla Vecchia), e ele, criado pela mãe (Claudia Ohana), com a ajuda do coronel Januário (Reginaldo Faria), é filho do temido cangaceiro Herculano (Domingos Montagner). A trama se passa no nordeste brasileiro numa cidade chamada “Brogodó” e no reino de “Seráfia do Norte”, na Europa.




Rei Augusto em Seráfia do Norte/Divulgação Rede Globo


Para atrapalhar o casal surge Timóteo (Bruno Gagliasso), filho do coronel Januário e um dos vilões da história, apaixonado pela então descoberta princesa. Tem também o casal formado pela duquesa Úrsula (Debora Bloch) e seu amante, o mordomo Nicolau (Luiz Fernando Guimarães), que com um viés quase cômico infernizam a vida dos heróis do reino. E figuras da “alta sociedade brogodoense”, entre elas, o delegado Batoré que abusa do poder concedido pelos coronéis da região.

A história não tem muito mistério. O bem e o mal, os mocinhos e os vilões, como qualquer trama de novelas, e o fim muitas vezes pode até ser o esperado. Mas não é esse o ponto chave, e sim as ligações e relações que muitas vezes os próprios telespectadores podem não perceber ou não saber que existem.

Como é o caso do próprio nome da novela “Cordel Encantado” que faz alusão a literatura de cordel, nomenclatura advinda de Portugal onde os livretos eram expostos em barbantes, como roupas no varal. No romanceiro popular nordestino, é aquela poesia improvisada e cantada ou contida em folhetos vendidos em feiras, esquinas e mercadinhos. Um dos principais temas da literatura de cordel do Brasil foi o cangaço, que surge no nordeste do país nos séculos 19 e 20, e tem origem nas questões fundiárias, caracterizado por ações violentas dos grupos. E o nome do personagem principal, Jesuíno, é o mesmo que o chefe do primeiro bando de cangaceiro em 1870: Jesuíno Alves de Melo Calado, o “Jesuíno Brilhante”. Além disso, um dos capítulos mostra uma armadilha feita para o capitão Herculano para que ele fosse capturado e preso, assim como ocorreu com o famoso Lampião, que em 1938, foi apanhado numa emboscada das autoridades, porém morto com a sua mulher, a Maria Bonita. O profeta Miguézim (Matheus Nachtergaele) é uma adaptação de Padre Cícero, o Padim Ciço, religioso que tinha milhares de seguidores, e que deu nome ao irmão da personagem principal na novela, Açucena.

E as comparações não param por aí. Indo para o cinema, assim como nos contos de fadas, Açucena descobre que seu nome é Aurora e que faz parte da realeza, história que já foi contada em filmes de animação infantil como “Anastácia”. Petrus, o irmão do rei Augusto, é preso numa masmorra pela sua esposa com uma máscara ferro. Aí, não é nem preciso pensar muito para relacionar com o filme “O homem da máscara de ferro”, quando um príncipe é trancado numa masmorra por ser irmão gêmeo do rei da França.

Mas não seria possível realizar esta fantasia, ou dar mais credibilidade a ela se não fosse com uma boa qualidade de imagem. Mais uma inovação da novela: padrão de cinema (24 quadros por segundo). As imagens são todas feitas em película, dando a sensação de que realmente é um filme. Sobre a técnica, são marcantes os cenários do sertão de Brogodó e os do reino de Seráfia, o sotaque do núcleo nordestino, os figurinos luxuosos do núcleo da realeza e a simplicidade de bordados, fuxicos e roupas de couro da parte sertaneja.

A abertura da novela feita com elementos gráficos como desenhos de uma história de cordel, e a trilha, a começar pela de início com “Minha Princesa Cordel”, interpretadas por Gilberto Gil e Roberta Sá, encaixam perfeitamente com a trama, onde tudo é possível. Nesse conto de fadas tem misticismo religioso, muito presente no nordeste brasileiro, cultura popular, e tradição européia. Lugar onde telefone e carros são compatíveis com a idade média, mas tudo com certa coerência... nada de cavalos voadores, por exemplo.

Para se ter uma ideia, sendo no horário menos nobre da televisão brasileira, o das 18 horas, atingiu durante dias seguidos até 27 pontos de Ibope, mais do que o normal de 23 e 24 do horário, e mais do que pontuam outros programas da rede Globo. É uma mostra de uma possível reviravolta na forma de fazer telenovelas, dando espaço para apresentações clássicas do nível de “Cordel Encantado”.





Divulgação Rede Globo

Analisando o que a televisão brasileira produz vê-se a necessidade de mais investimentos nessas tramas mais longas, algo que só é visto nas minisséries que contam a vida de personagens nacionais como “Maísa”, “Chiquinha Gonzaga” e “Dalva e Herivelton”. Passar esses fatores para um telenovela diária é novidade e pode ser uma ótima dica para aproximar o público da cultura popular, do estudo dos clássicos, tão criticado por não atingir a população massiva. Talvez seja uma forma de compensar as duas coisas. Dar à história e a arte, em suas mais diversas formas, a oportunidade de atingir um grande público, as vezes, carente de conhecimento, e às novelas, criticadas pela falta de profundidade, um pouco mais de cultura.


“Cordel Encantado” é uma ótima opção para quem gosta de entretenimento sem malícia e crueldade, e para quem partilha do gosto pela boa imagem, edição, interpretação e história.

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