14 de jul. de 2014

Um pedacinho de fantasia na televisão

Foto: Reprodução

Por Paola Oliveira


O sotaque marcado, os erres puxados e palavras inventadas compõem o roteiro da novela Meu Pedacinho de Chão (Rede Globo, 18h). Além da linguagem diferenciada utilizada por Benedito Ruy Barbosa, Luiz Fernando Carvalho (que dirigiu minisséries como Hoje é dia de Maria e Capitu) carrega nas tintas e muda completamente o conceito de novela.Mais uma vez, Meu Pedacinho de Chão inova o horário das 18h na televisão. Em 1971, quando foi ao ar pela primeira vez, em parceria com a TV Cultura de São Paulo, inaugurou o horário e era considerada uma novela educativa, por tratar do analfabetismo na zona rural. A nova novela consiste mais em uma releitura do que em um remake propriamente dito. Diferentemente da versão anterior, que tinha 185 capítulos, a atual volta em formato de folhetim, com apenas 100 capítulos, conta com elenco enxuto (cerca de apenas 20 atores) e investe em um raro tratamento cinematográfico – tanto sonoro quanto visual. Luiz Fernando Carvalho pode, sem dúvida, ser considerado o grande responsável por toda a alegoria de Meu Pedacinho de Chão. Conhecido por lançar novos atores na televisão, principalmente os do teatro, e por fugir das escalações viciadas de atores consagrados, o diretor confere um visual e um conceito totalmente novo à narrativa televisiva. Ao mesclar atores novatos e nomes como Antônio Fagundes e Rodrigo Lombardi (que já devem estar cansados de interpretar eles mesmos), os caracteriza de modo caricato, invertendo os papéis pelos quais são conhecidos.As novidades certamente surpreenderam mais os telespectadores do que os atores (que, afinal, perdem o sentido da profissão se não interpretarem diferentes personagens). A mistura de conto de fadas, literatura de cordel, romance no estilo Dom Quixote de La Mancha e quadrinhos, envolve diferentes sotaques, como o nordestino e o paulista, criando um idioma “caipirês” que unificou o elenco.








O cenário é bastante artístico, composto por construções revestidas de lata, que dão a impressão de serem brinquedos do século XIX. São surpreendentemente coloridos e cheios de conceito – por exemplo, as portas são baixas e estreitas, de modo que os atores precisam se abaixar para atravessá-las, o que remete a uma cidade em miniatura. A cenografia, feita nos moldes do universo fictício dos contos de fadas, conta com cavalos e galinhas de brinquedo, engrenagens que tornam objetos inanimados autômatos, um carrossel de esculturas de vacas denominado "curral-céu" e árvores enroladas com mantas de crochê.

A caracterização dos personagens também permeia o mundo do fantástico e tem referências dos quadrinhos, com cabelos cor-de-rosa e azuis, roupas extravagantes e de cores vibrantes. Os figurinos, que também utilizam material reciclável na composição, foram inspirados em referências históricas – como vestidos e perucas de Maria Antonieta (e que também lembram as exóticas roupas usadas pelos personagens de Jogos Vorazes).
O vilarejo de Santa Fé localiza-se em lugar nenhum do Brasil e é ambiente de uma narrativa atemporal – que abre espaço para todas as criações inventivas de cenários, figurinos, sotaques e questões discutidas na história. Assim como a primeira versão, o problema do analfabetismo na zona rural, principalmente na idade adulta, ainda é tema central. Outras questões sociais atuais, como infraestrutura, saúde, educação e política (com destaque para o recorrente tema da corrupção) permeiam a narrativa.

O elenco infantil ganhou destaque através dos diálogos inteligentes mantidos pelas crianças, em que citam clássicos da literatura brasileira e estrangeira, como o Sítio do Pica-pau amarelo e Peter Pan. As aventuras infantis, em um mundo à parte dos adultos, revelam sonhos cheios de ingenuidade, mas que de modo algum infantilizam a narrativa, cujo foco perpassa o menino Serelepe (uma mistura de Peter Pan com Pequeno Príncipe), que é órfão e a partir dele avança para a discussão de questões envolvendo justiça social e reforma agrária, mas sem perder o tom do conto de fadas e da fantasia.

O olhar artístico que valoriza os encantos da simplicidade e do colorido dos materiais, somado ao ótimo trabalho realizado pelos atores, comprova que para fazer boa televisão não é preciso montar estúdios gigantescos, criar centenas de personagens e produzir uma infinidade de figurinos. Meu Pedacinho de Chão retoma o imaginário, a fantasia e a literatura. O público agradece.


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