Por Stefanie Cirne
| Foto: Divulgação |
É assim, pois reprisa a felicíssima parceria entre ele e Thomas Bidegain na elaboração do roteiro, que, em 2009, resultou no primoroso O Profeta e colocou a França na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro no ano seguinte. É assim porque entra para o rol de títulos que estão ajudando a consolidar Audiard não só como roteirista habilidoso, mas como um cineasta de estilo, que gosta de recorrer a planos fechados, de fotografia impecável e sequências estratégicas em câmera lenta para enriquecer a narrativa. É assim, acima de tudo, por ser mais uma prova da maestria com que o diretor contrasta e concilia o bruto e o delicado, dicotomia que vem se firmando como sua temática favorita.
Apesar de acumular experiência como roteirista desde o começo dos anos 80, o sucesso de Audiard na direção é bastante recente: depois de ganhar três prêmios César, o Oscar do cinema francês, por Regarde les hommes tomber em 1994 (inclusive o de melhor debut), foi só com De tanto bater, meu coração parou (2005) que ele chamou atenção internacional. Tal qual O Profeta, seu sucessor, o filme foi a sensação do César em seu ano, e os dois renderam ao cineasta premiações de peso em Cannes e no BAFTA. Para quem já é familiarizado com essas produções – ambas temperadas com muitos acertos de contas que terminam em sangue entre criminosos –, a sinopse de Ferrugem e Osso parece carregar a promessa de quase nenhuma cena de violência e a ameaça de um filme água com açúcar, ou, no mínimo, sem sal.
Mas Audiard se mantém fiel a si mesmo. De fato, a violência é explicitada somente em poucos minutos de brigas e lutas, com direito a dentes perdidos e narizes quebrados. Por outro lado, ela se pulveriza em formas mais sutis por todo o filme, quase sempre agenciada por Alain: no desrespeito que dirige às mulheres, na pouca paciência que tem com o filho, na inconsequência que prejudica os mais próximos e fere a ele próprio. Emerge daqui o destaque reservado às relações humanas em toda sua complexidade e fragilidade por Audiard e o modelo de protagonista de seus sucessos anteriores: jovem adulto perturbado e desamparado, a quem o submundo do crime e da marginalidade pode ser obstáculo (De tanto bater, meu coração parou) ou redenção (O Profeta), mas sempre única alternativa. Infelizmente o background de Alain é muito pouco explorado para que fique claro de onde vem tanta revolta; essa falha e o descaso dedicado pelo roteiro ao filho Sam, personagem central para o desfecho da trama, são provavelmente os pontos mais baixos do filme.
À parte disso, a apresentação do protagonista é balanceada com demonstrações de afeto suficientes para torná-lo apenas humano, em vez de uma espécie de anti-herói. As interpretações desenvoltas do belga Matthias Schoenaerts (que parece completamente alheio à câmera) e da ganhadora do Oscar Marion Cotillard agregam verossimilhança a um enredo palpável por si só; o ganho em consistência está em distribuir a brutalidade dos acontecimentos e o tom rústico das dinâmicas interpessoais em doses homeopáticas, mas constantes ao longo da trama, tornando-os mais retumbantes justamente por serem corriqueiros. Embora exija do espectador o olhar sensível para “pescar” essas pistas, outro mérito de Ferrugem e Osso é construir-se como um filme artístico (os créditos iniciais, os planos embaixo d’água e a cena em que Stéphanie interage com a orca pelo vidro do aquário são muito bonitas) sem deslizar para o hermético, como algumas experimentações podem induzir. Para o futuro, resta apenas que Audiard não fique viciado em uma mesma fórmula – ou siga inventando roupagens criativas para revesti-la.
Ferrugem e Osso
(De Rouille et d'Os)
França/Bélgica,
2012, 120 min.
Direção: Jacques
Audiard
Com Matthias Schoenaerts e Marion Cotillard
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