17 de set. de 2013

Diplomado em poesia

Por Patrícia Soldatelli Valente 

Os caminhos abertos por Sérgio Vaz nas periferias de SP e do Brasil 


Fotos: Patrícia Valente
Era uma tarde de quarta-feira fria, cinzenta e chuvosa, quando – debaixo do guarda-chuva – caminhava pelas ruas de Porto Alegre. Buscava algo que nunca antes tinha encontrado; porém, com a diferença de que sabia onde procurar. O destino era certo: Rua dos Andradas, 736 – lá onde reside a memória-viva do poeta, jornalista e tradutor alegretense Mario Quintana. Local propício para um bate-papo com outro poeta, alguém que tem em Mario Quintana seu grande exemplo.

O momento era mais que perfeito. A 6ª FestiPOA Literária (de 10 a 19 de maio) agitava o ambiente cultural da capital gaúcha, com a presença de figuras artísticas, literárias, musicais, da moda...e por aí afora (do Brasil e de fora!).









Poeta e agitador cultural (como ele mesmo se define); nascido em 26 de junho de 1964, mineiro de nascença e paulista de criação. Sérgio Vaz tinha quatro anos e morava no vale do Jequitinhonha, interior-norte de Minas Gerais, quando seu pai decidiu migrar para São Paulo, para “construir” aquela cidade. Acompanhados dos pais, ele e mais quatro irmãos, se estabeleceram num cortiço na periferia da maior cidade da América Latina. E, apesar de hoje, viver com sua esposa e filha em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, foi naquele cortiço que sua ligação com a poesia começou.

Marcado pela infância simples de quem cresceu na periferia, tinha um sonho bastante comum aos meninos dos anos 70 no Brasil: ser jogador de futebol – sonho que ainda tem. “Do jeito que o Palmeiras ta jogando, é bem capaz que eu ainda tenha chance!”, ele brinca. O herói do moleque Sérgio, o pai, foi também sua inspiração para a leitura. Ele achava bonito ver a concentração do pai para ler sob a luz de uma lamparina. Por volta dos 14 anos, tentou ler seu primeiro livro Eram os Deuses astronautas? de Erich von Däniken. Foi quando a sensibilidade do pai lhe mostrou que o caminho não era esse. Muitas vezes, deixando de comprar outras coisas para comprar livros, seu herói lhe introduziu, etapa por etapa, no mundo dos livros: desde a literatura infantil, passando pela infanto-juvenil, os romances, contos, as crônicas e prosas, até a poesia.

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Esse Sérgio que agora fala comigo abertamente, nem parece a pessoa que diz ser outrora. Vence a timidez. A timidez que lhe acompanha desde menino, dando lugar a um Sérgio carismático e cheio de expressividade facial. O Vaz autodidata e sem estudos, que encontrou na poesia uma maneira de se expressar. – Diploma e conhecimento, por falta dos dois me tornei poeta, que é a forma mais bela que achei para dizer que sou analfabeto. (Literatura, pão e poesia - Diproma de poeta).

Aos vinte anos começou a escrever. Fazia letras de músicas para um grupo do seu bairro, o qual ingressou sem saber cantar, nem tocar. O cotidiano, a luta das pessoas, o sofrimento delas, o social, a rua, o bairro, a sua própria vida (e mais tarde seu trabalho) tornaram-se as principais temáticas abordadas. Como viver, financeiramente, só de poesia naquela época não era realidade para Vaz, ele serviu no exército, trabalhou em bancos e escritórios, foi vendedor de games e assessor parlamentar. Hoje em dia, apesar dos sete livros publicados (quatro deles independentes e três pela Editora Global), das palestras e eventos em que participa, tanto nacionais quanto internacionais, e dos lucros que arrecada com os direitos autorais de suas obras, o poeta confessa que nunca deixou de ter outros “bicos”.

Pergunto, então, se ele tem um estilo de fazer poesia. A resposta é não, mas diz estar na “busca da batida perfeita” (risos). Eduardo Galeano é um de seus inspiradores, quadro composto também por Pablo Neruda, Manoel Barros, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana. Emocionado, Vaz ressalta o quão lisonjeado se sente por poder palestrar na Casa de Cultura Mario Quintana e por estar, novamente, em Porto Alegre. Cidade essa que já lhe acolheu inúmeras vezes, especialmente, no ano passado quando lançou a obra Literatura, pão e poesia na Palavraria Livros e Cafés.

A traquinagem do poeta gaúcho está presente na literatura periférica e no trabalho do poeta paulista. Foi da mesma “Emergência de Mario Quintana e, antes que todos fossem embora pra Pasárgada” (poema Literatura das ruas), que nasceu a Cooperifa – Cooperativa Cultural da Periferia.

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Outubro de 2001: havia a necessidade de criar um centro cultural na periferia. Não existia nenhum até então. Sérgio Vaz e Marco Pezão, fundadores da Cooperifa, utilizaram o boteco Zé Batidão (propriedade do pai de Vaz), no Jardim Guarujá, extremo sul de São Paulo, para agrupar a comunidade, pois os únicos lugares públicos disponíveis que tinham eram o bar e a Igreja. Preferiram o bar. Agora, o bar já tem biblioteca e cinema. Desenvolvem os Saraus da Cooperifa. Toda quarta-feira à noite acontece o que, nas palavras da jornalista Eliane Brum, “talvez seja a maior poesia viva desse país”. Centenas de pessoas se reúnem no Sarau, em torno da poesia, para “exercer sua cidadania”. Para lá se dirigem poetas e poetisas de todos os credos, classes e jeitos.

Através da poesia, com uma linguagem bem despojada, acessível e de vocábulos populares da periferia, eles foram se aproximando dos jovens e entrando nas escolas. Em O Machado, o talarico e a racha (2008), Vaz explica que constrói suas poesias com expressões usadas no dia a dia das ruas, as quais não constam em nenhum dicionário. Mas e se alguém quiser saber o que significam? Ah!, ele adverte: vai ter de conhecer as pessoas que as usam. Ressalta que a Cooperifa não forma escritores, mas sim leitores. “Eliminamos o Piaget e agora temos o Pinochet para aqueles que não gostam de ler” - satiriza, quando questionado sobre os métodos dos quais se apropria para incentivar a leitura nas periferias.

Para o poeta, o importante é “agir local e pensar global” e foi isso que o motivou a fundar a Cooperifa, porque não adiantava ficar só reclamando do governo e protestando contra o fato de a comunidade não ter um centro cultural. Foi preciso agir. O resultado do trabalho deles está espalhado por vários lugares: nas comunidades do Pelourinho/BA, Alemão/RJ e, inclusive aqui em POA, onde inspirou o Sarau Bezerra da Silva, que durou dois anos. Além disso, por meio da Cooperifa é possível mostrar as pessoas o que é poesia e permitir que elas gostem de poesia.

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A poesia de Sérgio Vaz é a poesia de soco mesmo. Alguns até dizem que se tratam mais de crônicas do que poemas. Mas não importa. É a poesia que nos golpeia. Aquela que vem, em formato de pedra, para falar sobre as realidades mundanas.

Comento com Vaz que na obra A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada, o filósofo francês Gilles Lipovetsky coloca que as obras não são mais contempladas no recolhimento e no silêncio de outros tempos. Lembro que a poesia, por exemplo, aqui em Porto Alegre está fixada nas janelas dos ônibus, inserida no contexto da vida agitada, onde não há mais pausas para reflexão. O poeta rebate dizendo que é aí que mora o grande problema da poesia tradicional. Nessa linha de pensamento, os poetas reclamam/reclamavam que ninguém os lê/lia; porém é “a literatura que tem que se curvar diante do leitor”, enfatiza ele – e não o contrário. Ponto de vista, esse, que está bem expresso no poema Literatura, pão e poesia, escrito em julho de 2007. “O tal poema, que desfilava pela academia, de terno e gravata, proferindo palavras de alto calão para plateias desanimadas, hoje, anda sem camisa, feito moleque pelos terreiros, comendo miudinho na mão da mulherada [...]. A periferia nunca esteve tão violenta: pelas manhãs, é comum ver nos ônibus, homens e mulheres segurando armas de até quatrocentas páginas. Jovens traficando contos, adultos, romances. Os mais desesperados, cheirando crônicas sem parar. Outro dia um cara enrolou um soneto bem na frente da minha filha. Ficou com a rima quebrada por uma semana.”

É pensando na aproximação das pessoas com a poesia, que Sérgio Vaz utiliza (sem pudor) as redes sociais e as ferramentas da internet. No seu site Colecionador de Pedras as poesias são publicadas continuamente, assim como no seu perfil do Facebook e no da Cooperifa. Quais são os seus poemas favoritos? Porém, Os Miseráveis (sim, é uma alusão a Victor Hugo), Família vende tudo, Novos dias, e a listagem não para. Ele declama os últimos dois com a entonação de quem canta uma música, e explica que Família vende tudo foi feito em virtude de uma série de incêndios ocorridos, misteriosamente, em uma favela de São Paulo; depois do fogo surgiu “incrivelmente” um magnífico prédio naquele lugar.

Então, o menino perguntou a Sérgio Vaz:
– O que é poesia?
 – Poesia é a forma diferente de olhar as coisas, ele respondeu. (Literatura, pão e poesia)


LIVROS PUBLICADOS:
*Literatura, pão e poesia
*Colecionador de Pedras
*Cooperifa – Antropofagia Periférica
*Subindo a ladeira mora a noite
*A Margem do Vento
*Pensamentos Vadios
*A poesia dos Deuses Inferiores

PRÊMIOS RECEBIDOS:
*Trip Transformadores 2011 (Trip Editora)
*Orilaxé 2010 e Heróis Invisíveis 2010 (Grupo Cultural AfroReggae)
*Foi listado como uma das 100 pessoas mais influentes do Brasil em 2009 (Revista Época)
*Prêmio Unicef 2007

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