10 de dez. de 2011

A música escondida dentro dos melhores arcos do mundo

Por Rafael Maia
Fotos Rafael Maia


Michael Jackson, Maria Callas, Madonna, Kylie Minogue, Angela RoRo, Secos e Molhados. Esses são só alguns dos muitos vinis expostos nas paredes do Espaço Cultural Qorpo Santo, abrigado pelos arcos do Viaduto Otávio Rocha, no coração de Porto Alegre e em todos os outros órgãos do corpo do criador Adacir J. Flores. "Não existem arcos como esse no munto inteiro. Talvez em Conpenhagen, na Dinamarca. Mas os daqui são melhores", explicou com cuidado Flores. Duvidar para quê? O melhor é se deixar levar pela musicalidade do local. É tudo muito bagunçado para quem vê. Os vinis - alguns muito raros - estão espalhados por debaixo das mesas, em cima das prateleiras, por entre os livros, as revistas, os CDs, a poeira, os relógios antigos e as pessoas que visitam a loja. Mas para o seu Adacir, tuda está muito organizado na cabeça de 50 anos, dos quais 25 são dedicados à existência da loja.


O empreendimento começou como um bar. Quer dizer, o Espaço Cultural nasceu a partir de um bar, o Qopo Santo. Mentira. O bar se transformou em um espaço cultural . Há uma grande diferença. Certo, seu Adacir? Com a última grande reforma do Viaduto Otávio Rocha, o bar - lugar de bebidas e de “arruaceiros” - precisou “deixar” a existência para trás. "Com a reforma do Viaduto, há mais ou menos 25 anos, fizemos uma votação para escolher o novo nome desse lugar", disse o dono ao explicar que, na época, foi feita uma votação com os clientes mais assíduos para que a decisão fosse tomada em conjunto. Nada mais justo. "Aliás, você sabia que a atual presidente frequentava o bar", falou para mim o seu Adacir ao apontar uma foto antiga - judiada pelos anos e pela humidade inevitável de um lugar em que o sol não é bem-vindo - na qual a presidente Dilma não aparecia.

Todos, no entanto, tinham um objetivo em comum: encontrar um nome que se relacionasse ao Centro da cidade. "Ficou entre Jacarandás, Luzes da Cidade, mas o que ganhou foi mesmo o Qorpo Santo, por causa do escritor gaúcho do século 18", nas palavras de Adacir. "Foi século 19", corrigiu um dos muitos "amigos da casa" que perambulam pela loja - movidos talvez não pela nostalgia do vinil, mas do Qopo do extinto bar. Qorpo Santo, o dramaturgo de Triunfo confirmadamente do século 19, era ele mesmo uma transformação. Santo nasceu José Joaquim de Campos Leão, acrescentou à alcunha ao nome, escreveu de 1829 a 1883, rendeu-se à loucura estética do surrealismo, torn e morreu sem se tornar conhecido do grande público.

Sina do nome ou do efeito da mutação de uma coisa em outra, o destino da loja de vinis não é muito diferente da do dramaturgo. O Espaço Cultural é - infelizmente - pouco conhecido, mas muito frequentado. "Há muitas pessoas que esperam pelos ônibus aqui na frente", explica um amigo da casa. Soubessem elas que neste local, em meio aos vendáveis, existem alguns intocáveis como uma edição pouco desgastada pelo tempo da trilha da peça "Liberdade, Liberdade" com Paulo Autran de Flávio Rangel e Millôr Fernandes com as vozes de Nara Leão e Simonal, o mundo seria um lugar mais bonito. Mas isso não seria motivo para que elas entrassem - todos sabemos - muito menos para que comprassem algo deste tipo.

Talvez então uma edição de um LP em homenagem a Che Guevara, em espanhol, que conta com o aúdio da leitura da "Carta ao Che" pelo cubano Fidel Castro pudesse chamar a atenção? Não faz diferença. O vinil em questão fica bem guardadinho, longe da vista das pessoas, debaixo de uns Beatles. "Não tem nada a ver com valor", responde categoricamente quando perguntado se por R$ 2 mil reais a raridade seria vendida. "Ele simplesmente não está à venda e pronto", finaliza a pergunta como em um ringue de boxe. Nenhum LP do Espaço Cultural, a bem da verdade, chegaria a esse valor surreal da casa dos quatro dígitos. Atualmente, somente três artistas chegam aos três dígitos: a banda nacional Colera, o "Tábua de Esmeralda" de Jorge Ben e o "Racional" do Tim Maia.



O seu Adacir, que tem página no Facebook e é membro ativo da Arccov - a Associação Representativa Comercial e Cultural dos trabalhores dos arcos - fez questão de dizer que tem planos para o futuro do lugar. Arrumar a bagunça, talvez? Que nada! "Eu quero é criar aqui um pub cultural, um lugar para as pessoas tomarem café, beberem uma cerveja, lerem um livro e ouvirem uma boa música", explicou. E todo mundo sabe que, invevitavelmente - graças a deus - dessa mistura só surge mais bagunça. E das boas.

Ao me despedir do simpático e cuidadoso dono do Qorpo Santo, chegava uma mulher - que aparentava estar acompanhada do namorado e de alguns 20 e poucos anos de idade. "O senhor tem alguma coisa do Paralamas do Sucesso?", perguntou a menina loira de óculos. "Isso aqui estava cheio, agora todo mundo sumiu", reclamou antes de ser engolido pelos vinis que estão protegidos pelos melhores arcos do mundo.

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