10 de dez. de 2011

Cinema apesar do mercado

Por Tiago Gautier
Fotos Tiago Gautier


Numa manhã de sol em Porto Alegre, o trânsito é intenso. Uma mulher loura caminha dentro de um ônibus, meio vazio para o horário, até o último par de bancos do lado direito antes da porta traseira, virado ao contrário em relação aos outros pares de bancos. Sentada, uma outra mulher, jovem e bonita como ela, lê um livro. Ela se aproxima incisiva e retoma um diálogo que parecia já ter sido iniciado e interrompido antes de entrarem na condução.

- Tu tem razão, é mais rápido ir pro centro de ônibus.
- Tu também vai pra lá?
- Decidi no caminho. – diz a loura, de cabelos curtos e gestos bruscos, antes de pedir para se sentar.
- Claro - responde a outra, de cabelos negros amarrados em um rabo de cavalo alto, óculos de armação pesada, vestido branco e tênis de cano alto, estilo que contrastava com os cabelos espetados, o vestido preto e a bolsa de vinil da mulher que agora sentava ao seu lado.

- CORTA - grita o diretor, acocorado nos bancos do fundo do ônibus, ao lado do câmera e do técnico de som, que luta para se equilibrar e segurar com firmeza o microfone no ônibus em movimento - tá muito bom – diz ele – mas vamos cortar a parte em que ela pede para sentar. A Mona não pediria, ela simplesmente se jogaria no banco.


A intérprete de cabelos oxigenados de Mona consente e retorna à marcação para reiniciar a cena.

- Cena cinquenta e um, tomada oito - grita o diretor – Ação!
Mona refaz o caminho até o banco onde a outra mulher está sentada e repete o mesmo diálogo pela oitava vez.
- Tu tem razão, é mais rápido ir pro centro de ônibus.
- Tu também vai pra lá?
- Decidi no caminho.

Ela se senta displicente ao lado da outra, sem falar nada, seguindo o conselho do diretor. Depois de um momento em silêncio, retoma a conversa.

- Me sinto o Peter Coyote.
- Quem?
- Peter Coyote. Lua de Fel. Tu ainda não viu?
- Não.
- Ele conhece a mulher da vida dele num ônibus - ela estende a mão, apresentando-se à interlocutora - Mona.
- Adri... Tu trabalha no centro? - A voz de Adri, ao contrário da outra, é tímida e hesitante, quase apagada.
- Não, eu bebo no centro - responde Mona, impetuosa.

As duas riem. Mona fica séria de repente.

- Tá a fim?
- O quê?
- De beber. Eu pago.

- CORTA - grita novamente o diretor. O motorista do ônibus, que conduzia pela Avenida Nilópolis devagar e com o motor desligado, é obrigado a religar o veículo, que havia perdido o impulso e precisava seguir andando mediante à reclamação das buzinas dos outros carros. O ruído interrompe a continuidade da cena. É difícil pedir silêncio no set quando o set em questão é um ônibus de linha da Carris, cedido para as filmagens, circulando às dez horas da manhã de sexta-feira em uma das zonas mais movimentadas da capital gaúcha, sem o suporte nem da EPTC nem de nenhum outro órgão público. Entre idas e vindas pelas avenidas Nilópolis, Nilo Peçanha, Plínio Brasil Milano e pela rua Barão do Amazonas, a cena, de aproximadamente um minuto, um minuto e meio no máximo, leva três horas e meia para ser gravada, sendo repetida 22 vezes.

A gravação faz parte do longa Nós duas descendo a escada, de Fabiano de Souza, com previsão de estreia em 2012, no Festival de Cinema de Gramado. A gravação, que estava marcada para o final de semana anterior, fora adiada para a mesma sexta-feira em que outro longa de Fabiano, A última estrada da praia (2010) iniciava sua sexta semana em cartaz no circuito de cinema alternativo de Porto Alegre. Salas como a P. F. Gastal, na Usina do Gasômetro, o Cine Santander Cultural e o Instituto NT são espaços consolidados de modo a garantir a exibição de produções independentes na cidade por períodos maiores.

No fim da gravação, a equipe de oito pessoas - o diretor, o diretor de fotografia/cinegrafista, o técnico de som, a maquiadora/figurinista e as duas atrizes, além de uma produtora e do assistente de direção, que também fizeram figuração - aplaudiram a conclusão da primeira etapa das filmagens. Ao todo, a gravação do filme deve durar nove meses. Ao ser perguntada sobre o porquê de um tempo tão longo, a produtora Tainá Rocha explica que a demora nas gravações se deve ao fato da equipe se reunir apenas durante um final de semana por mês. Uma vez que todos trabalham "no amor", expressão bem conhecida no meio artístico e que se refere ao trabalho não remunerado, realizado apenas "pelo amor à arte", a restrição das horas de set é compreensível. Conciliar as agendas da equipe, que trabalha em diversas outras funções para sobreviver, não é fácil. Mas as dificuldades na produção, garante Tainá, são compensadas pela criatividade: "nas produtoras maiores, é tudo muito fácil, tudo é pago, até a figuração. Quando é um projeto como esse, sem orçamento, tudo precisa ser pensado de acordo com os recursos que temos, a criatividade tem que ser maior".

O ônibus utilizado, sem ar-condicionado, circulava de portas abertas nos intervalos de cena, para que a maquiagem das atrizes não derretesse com o calor. Para amenizar o ruído do motor, a equipe gravava às pressas em cada descida íngreme, com o veículo desligado. O vazio do ônibus, resultado da escassez de figurantes, foi resolvido com o uso de planos fechados, que mostravam pouco mais que o rosto dos atores.



Dinheiro, a grande questão
As produções de baixo orçamento (B.O.) são uma realidade no mercado audiovisual brasileiro e especialmente no cenário gaúcho, onde ganharam destaque nas últimas duas décadas com a proliferação de pequenas produtoras, como a Clube Silêncio, de Cão Sem Dono, de Beto Brant, e Ainda Orangotangos, de Gustavo Spolidoro, ambos de 2007. Ex-sócios da Clube Silêncio, Fabiano de Souza e Milton do Prado, saíram para fundar a Rainer Cine, responsável pela produção de Nós duas descendo a escada e de A última estrada da praia, este último uma parceria entre a Rainer, a Okna e a própria Clube Silêncio.

Esse tipo de produção de baixo custo enriquece a experiência audiovisual por permitir maior liberdade de criação aos realizadores do que o trabalho realizado em produtoras maiores, mais preocupadas com o retorno do investimento através das bilheterias. Para o roteirista formado em audiovisual Juliano Rodrigues, no mercado brasileiro, produções mais autorais quase sempre sofrem com a restrião orçamentária. “É possível ter um grande financiamento para uma produção independente, mas isso normalmente está ligado ao cinema americano e normalmente a um diretor que já possui alguns trabalhos tanto em curta quanto em longa”, explica Juliano, que tem diploma em realização audiovisual, mas trabalha como técnico no Núcleo de Estudos e Produção em TV da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS. Paralelamente ao trabalho formal, Juliano faz cinema cooperativo, com grupos de amigos, que, de acordo com ele, se reúnem para elaborar projetos já tendo em vista a inscrição em editais públicos de incentivo à produção audiovisual.

Para quem busca financiamento do governo, existe o Fumproarte, da prefeitura, que, garante Juliano, é bastante concorrido, além de projetos ocasionais financiados pelo Instituto Estadual de Cinema (IECINE) e pela ANCINE, órgão nacional, que disponibiliza diversos editais pra curta, média e longa metragens, documentários, e filmes já em processo de finalização durante o ano, além de liberar recursos referentes à Lei Rouanet e à Lei do audiovisual. Sem a ajuda governamental, para Juliano, é difícil angariar fundos. Uma análise dos dados da ANCINE, porém, aponta para outro problema: a concentração de recursos. No primeiro semestre de 2011, dos mais de 110 milhões de reais liberados pelo governo federal para a realização audiovisual, cerca de 60% estão concentrados em apenas 20 projetos, enquanto outros 208 repartem os 40% restantes.

A outra opção são produções feitas sob encomenda por empresas como a RBSTV, que há mais de dez anos possui um núcleo de produção de especiais e dedica um espaço semanal em sua grade para a exibição de curta-metragens. Mesmo quando existe esse tipo de investimento, porém, os valores são irrisórios. Segundo a professora do curso de realização audiovisual da Unisinos, Fatimarlei Lunardelli, que estuda o Núcleo de Especiais da RBSTV, o orçamento médio para um curta metragem é algo em torno de R$100 mil, ainda que a substituição da película pelo equipamento digital barateie os custos de produção. Os R$40 mil disponibilizados pela RBSTV para a produção de filmes para o projeto Histórias Curtas 2012 são considerados uma quantia baixa. O valor médio disponibilizado pelos editais do Ministério da Cultura para produções de longa metragem de baixo orçamento fica em torno de R$1 milhão.

Orçamento é estética
Fatimarlei se dedica ao estudo da linguagem audiovisual e cita o cineasta Jorge Furtado para afirmar: “orçamento é estética”. Juliano concorda, e afirma que a restrição orçamentária implica certas particularidades estéticas bastante notáveis. Para Fatimarlei, ainda que a estética seja em muito definida pelos recursos de que dispõem os realizadores, os filmes de baixo orçamento não se tratam de uma “etapa” necessária na carreira do cineasta, que depois “evoluiria” para produções mais sofisticadas. Para a professora, alguns realizadores preferem manter sua autonomia criativa ainda que isso signifique abrir mão de recursos financeiros, enquanto outros se adaptam melhor às demandas mercadológicas e não veem problemas em trabalhar em grandes produtoras ou em desenvolver projetos ligados a grandes conglomerados como a RBS.

Em alguns casos, a disponibilidade dos recursos pode sobrecarregar ou até mesmo atrapalhar a produção, culminando no que pode ser chamado de uma “estética do exagero”. Exemplos dessa estética não faltam em filmes hollywoodianos nos quais efeitos especiais, explosões e perseguições em alta velocidade mal conseguem disfarçar roteiros constrangedores e repetitivos.

Segundo Fatimarlei, o mercado audiovisual, incluindo cinema, televisão e publicidade, é muito amplo e oferece muitas oportunidades para quem está disposto a se aventurar pelo ramo. Quando perguntada se os investimentos dão retorno, a professora é enigmática: “essa é a questão mais difícil de ser respondida. Cada caso é um caso”. Segundo Juliano, o maior lucro é a existência do bem cultural, o trabalho da equipe e a troca de experiências – “como negócio, cinema só é bom pras grandes salas de exibição, os multiplex, fora disso, é quase simbólico o lucro”, afirma ele.

Um espaço importante de reconhecimento para as equipes que se dedicam à produção audiovisual são os festivais de cinema. “A última estrada da praia” faturou cinco prêmios no Festival de Cinema de Triunfo, e um no 1º Festival Lume de Cinema. No caso do cinema cooperativo, o valor dos prêmios é geralmente dividido com a equipe, que não recebe nenhum tipo de remuneração durante as fases de gestação dos filmes, mas a realização audiovisual é um vício: boa parte dos prêmios é reinvestida em novos projetos. E a cena recomeça.

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