10 de dez. de 2011

Esporte de elite: o encarecimento dos ingressos para assistir aos jogos de futebol no Brasil

Por Vicente Andrade de Carvalho


Uns dizem: é só um jogo. Outros, tem seu comportamento, hábitos e rotina influenciados por ele. Quem pode, frequenta os templos onde esse esporte é venerado como uma religião, com seus símbolos sagrados, deuses e rituais. E nos últimos anos, o “dízimo” pago para participar da celebração do futebol tem contribuído para mudar cada vez mais o perfil do torcedor que vai aos estádios. Vários são os motivos. Passam pela redução da capacidade de lotação desses espaços, pela necessidade dos clubes manterem sua saúde financeira, arcando com os grandes valores envolvidos na administração das instituições, entre outros. A verdade é que assistir ao espetáculo futebolístico está ficando inacessível para muitos que cultivavam o hábito. Mas apesar dos preços de ingressos terem subido, a qualidade das apresentações não acompanha o mesmo ritmo ao passo que os jogadores mais promissores não costumam ficar muito tempo por aqui.

Com o aumento dos custos em geral para quem quer assistir aos jogos nos estádios, alguns elementos característicos de uma identidade consolidada ao longo de décadas pelas torcidas em todo o país vão se perdendo sem que muitos se deem conta dessa transformação. No lugar dos cânticos dos vibrantes torcedores, que interagem entre si na comemoração dos gols, munidos dos seus instrumentos de manifestação das paixões que sentem pelos clubes, entra em cena o espectador desejado pelos administradores do esporte, satisfeito com o fato de poder assistir ao espetáculo, sentado em cadeiras demarcadas e projetadas para tirar a sua espontaneidade. “Há uma certa inquietude em relação à diversidade de público e também das formas de torcer, e a maneira de torcer das gerais, que normalmente eram os espaços frequentados por torcedores de classes mais populares. Esses espaços foram praticamente extintos”, avalia o professor do Departamento de Antropologia da UFRGS, Arlei Sander Damo.


O jornalista e torcedor do Internacional, Luís Felipe dos Santos já frequentou os espaços destinados às gerais, inclusive foi um dos fundadores da torcida organizada Guarda Popular. Foi ao Beira-Rio pela primeira aos 6 anos de idade e passou a ir com mais frequência aos jogos na adolescência, quando associou-se ao clube. E um dos espaços mais populares do estádio era a Coreia, que atraía colorados pelos preços baixíssimos dos ingressos e também pela proximidade com o campo. Extinto, o setor dará lugar à ampliação das arquibancadas em meio ao processo de reformas pelo qual o estádio vem passando para sediar os jogos da Copa do Mundo de 2014. Luís Felipe assistiu a algumas partidas naquele espaço e lembra que não era agradável. Segundo ele, “o bom mesmo era o ambiente do local em jogos grandes, como a final do Gauchão de 2003”. O jornalista avalia que o setor também teve a sua importância no fortalecimento dos laços entre torcedores e ídolos. “Fabiano era um expoente da Coreia, por exemplo: metade da lenda construída por ele está no fato de que ele era um titã na ponta direita, os coreanos urravam acompanhando suas passadas e quando tudo terminava em gol, ele se voltava para esse espaço para agradecer.”

No estádio do Grêmio, o Olímpico Monumental, uma torcida organizada marca presença há 10 anos, posicionando-se atrás da goleira da avenida Oswaldo Rolla, à direita das cabines de imprensa. Conhecida como Geral, ela desce as arquibancadas a cada gol do tricolor em uma comemoração conhecida como avalanche. Quem vai aos jogos do clube sabe da importância desse setor. É lá que milhares de torcedores passam os 90 minutos dos jogos entoando cânticos de apoio ao clube, exercendo o papel de maestro do restante do público. Mesmo com a construção da Arena do Grêmio, projetada de acordo com os padrões Fifa, existe a tendência de manutenção de um espaço em que essa organizada possa torcer sem perder sua identidade.

O superfaturamento do valor dos ingressos
Em maio de 2011, o jornal “O Estado de São Paulo” divulgou um levantamento realizado pelo próprio periódico, que revelava que os preços dos ingressos para assistir a jogos de futebol no Brasil tiveram um aumento de 152,06% entre 2004 e 2011, muito acima da inflação oficial, que foi de 47,97% nesse período. De acordo com a pesquisa, todas as regiões do país registraram altas nos valores das entradas, que atualmente custam entre 30 e 40 reais no caso dos grandes clubes. A matéria indica que entre os fatores que contribuem para tanto está a contratação de jogadores de peso e as boas campanhas dos clubes em determinadas temporadas e campeonatos.

Os quadros sociais como alternativa
Uma alternativa para baratear os ingressos tem sido o investimento na fidelização do torcedor, estimulando-o a marcar presença em todos os jogos, até mesmo aqueles que não possuem muitos atrativos. Imagine você pagar para assistir a um jogo que não vale nada para o seu time. É aí que entra a valorização dos sócios. Há aqueles que assistem às partidas sem precisar adquirir ingressos, pagando mensalidades que podem custar mais de 100 reais. Também há os que pagam valores mais reduzidos para garantir descontos e preferência na compra das entradas.

E esse investimento massivo nos quadros sociais tem contribuído para afastar certa parcela da torcida dos jogos, principalmente os de grande apelo. O Internacional, por exemplo, com seus mais de 100 mil sócios não pode assegurar nem mesmo a todos eles a garantia de entrada no estádio, com capacidade para 56 mil pessoas. O Grêmio não está muito longe dessa realidade, com um quadro social de aproximadamente 62 mil torcedores e capacidade de lotação do estádio Olímpico Monumental para 45 mil. Para Luís Felipe dos Santos, esse afastamento é prejudicial para as próprias instituições esportivas porque “os clubes perdem muito dinheiro e correm sério risco de perder sua identidade quando se afastam do povo, desde os preços das camisetas até os preços dos ingressos, passando pela falta de políticas sociais.”

A influência dos grandes eventos esportivos na elitização do futebol
É oportuno lembrar o papel de grandes eventos esportivos, como a Copa do Mundo, nesse contexto de elitização, pois os países sede acabam sujeitando-se a uma série de exigências que são feitas pelas federações esportivas responsáveis pela sua realização, o que reflete também no valor cobrado pelos ingressos, que por sua vez tem em seu valor o reflexo dos altos investimentos na modernização dos estádios e construção de novos, que passam a oferecer conforto e segurança para os torcedores e para a imprensa. O que nem sempre é compatível com o local em que isso é proposto. “O tipo de exigência imposto pela Fifa, o padrão exigido em relação aos estádios é um padrão europeu. Então, ele não é um padrão adequado à nossa realidade. O padrão médio de ganho de um europeu ainda é muito superior ao de um brasileiro”, destaca o professor Arlei. Para o também autor dos livros “Do dom à Profissão: a formação de futebolistas no Brasil e na França” e “Futebol e Identidade Social”, a definição do valor dos ingressos é um problema dos clubes, que podem cobrar o valor que desejarem pelas entradas por serem donos dos estádios. A contradição reside nos casos daqueles construídos com dinheiro público, como o Maracanã, o Mineirão, o Engenhão, entre outros.

Distribuição de renda não significa maior acesso aos espaços culturais
Nos últimos anos, os brasileiros têm sido testemunhas de um processo de consolidação da economia do país, com o aumento da renda média da população em geral que aos poucos começa a se integrar à lógica de consumo de bens materiais e simbólicos antes restrita a uma parcela menor da sociedade. Apesar disso, a inclusão não parece andar lado a lado com a democratização dos espaços culturais. O professor Arlei Sander Damo pensa essa relação comparando os estádios de futebol aos cinemas, que em certo período também eram muito populares, e que através da reconfiguração desses espaços, que hoje estão predominantemente inseridos em shopping centers, passam a privilegiar a presença de um público mais elitizado. “Óbvio que ninguém tá impedido de frequentar, mas pelo valor do ingresso, se cria uma série de constrangimentos”, constata Arlei.

O fato é que reside nessa lógica um problema com o qual os administradores desses espaços não estão preocupados em lidar. O que vale mesmo é o lucro em si, não importando eventuais distorções. “Num contexto em que os mais humildes são incluídos na economia brasileira, o afastamento do torcedor mais humilde é uma política burra.”, opina Luís Felipe. De acordo com o jornalista, a elitização do futebol opera uma dinâmica de afastamento do público indesejado pelos clubes, algo com o qual ele não concorda. “As classes D/E foram excluídas do processo, quando são elas que querem chegar ao nível C e podem ser potenciais motores da economia”.

Outras formas de torcer
Não há dúvidas de que o torcedor não vai deixar de acompanhar o seu clube pelo fato de não poder arcar com os custos dos ingressos. De olho nessa dinâmica, as emissoras de rádio seguem investindo forte nas coberturas esportivas, e o velho radinho de pilha ainda é um dos companheiros de muitos amantes do futebol no país. Por outro lado, se depender da televisão, eles vão assistir apenas aos jogos de outras regiões. Costuma-se ironizar a Globo nesse sentido, pois a maioria das partidas transmitidas por ela é de Flamengo e Corinthians, times com as maiores torcidas do Brasil. Mas nem todo mundo torce para eles. Claro que os outros clubes não têm interesse numa inversão desse processo, uma vez que lucram muito mais com as partidas sendo televisionadas pelo pay-per-view, serviço inacessível para grande parcela da população brasileira pelos seus altos valores.

Em meio a essa realidade, os bares passam a oferecer a transmissão dos jogos locais, concentrando boa parte dos torcedores. Lá, eles torcem, bebem, interagem entre si muitas vezes como se estivessem no estádio, tendo com quem compartilhar alegrias e tristezas. São algumas opções para quem não quer ficar privado de um dos rituais mais tradicionais da nossa cultura. No entanto, não são o suficiente para amenizar o processo de exclusão que mantém os torcedores mais humildes bem longe dos estádios.

Torcedores nos bares/Crédito: Ricardo Matsukawa/Terra


Elitização do futebol: processo definitivo?
Apesar do fenômeno se acentuar nesse período próximo à realização da Copa do Mundo de 2014, não pode-se afirmar que ele é definitivo. Vale lembrar que o futebol deu seus primeiros passos no Brasil como um esporte dominado pelas aristocracias, popularizando-se com o passar dos anos, principalmente com as conquistas da seleção brasileira a partir do final dos anos 50. Para o professor Arlei Sander Damo existe uma reconfiguração permanente nessa dinâmica. “Certamente nós vamos ter ainda momentos em que ele (o futebol) vai se elitizar mais, depois vai se popularizar, então eu acho que não é uma coisa definitiva”, argumenta Arlei.

E se há formas de sustentar os altos custos envolvidos na administração dos clubes sem prejudicar os torcedores de menor poder aquisitivo, Luis Felipe dos Santos aponta exemplos. “A Alemanha tem alguns dos clubes mais ricos do mundo, e não deixou de ter ingressos mais baratos para seus torcedores. Conclusão: há estádios que têm média de público de 68 mil pessoas, na mais perfeita segurança”. E se os clubes entendem que ao afastar os torcedores com menor poder aquisitivo dos estádios estão operando a melhor estratégia de arrecadação de renda, Luís Felipe discorda. “Os clubes perdem muito dinheiro ao não olhar para os mais pobres, por mais paradoxal que isso possa parecer”.

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