21 de jul. de 2011

Apocalypse: quando a música encontra o mercado

Por Anelise De Carli e Sabrina Ruggeri

Apocalypse no São Paulo Art Rock, 2007
A década de 1980 é, para muitos músicos do rock gaúcho, um momento de intensa produção musical, especialmente de trabalho autoral. No contexto inventivo dessa geração, grandes nomes surgiram, ganhando espaço nas rádios e na televisão numa dimensão nacional, até então somente ocupado por bandas do centro do país ou internacionais. Contudo, alguns personagens dessa história que não se adaptaram aos requisitos do mercado fonográfico nacional continuam estanques em solo gaúcho, embora uma importante ressalva deva ser feita: a razão deste fato não se esgota num primeiro olhar.


Requisitos que dizem respeito principalmente a uma boa rede de relacionamentos para auxiliar esses artistas, de acordo com os produtores musicais com quem conversamos. Se pensarmos que outros bons músicos podem se decidir por não aderir a este “imperativo” do circuito nacional e, ao invés disso, se voltarem exclusivamente a um trabalho original e coeso, que responda a seu pequeno público, então poderemos compreender porque alguns nomes simplesmente não são ouvidos.

É nessa época que formaram-se em Porto Alegre bandas como Os Cascavelletes, DeFalla, Nenhum de Nós e TNT. No mesmo período, mais precisamente em 1983, o tecladista e hoje professor do Departamento de Música da UFRGS, Eloy Fritsch, montou um power trio chamado Apocalypse. Hoje, com 28 anos de carreira, a banda conta, além do frontman Eloy, com Gustavo DeMarchi nos vocais, o baterista Fábio Schneider, Ruy Fritsch (irmão de Eloy) nas guitarras e Magoo Wise no contra-baixo. Entre as bandas enumeradas, a mais premiada e reconhecida a nível internacional é, certamente, a única da qual o leitor pouco ou nunca ouviu falar.

Rock gaúcho e Rock Progressivo – Da Serra Gaúcha à Europa

Seguindo a receita clássica de bandas de rock, em que os integrantes se conhecem no colégio e começam a brincar de fazer música, Eloy e Chico Casara – baixista quando a banda era inicialmente um trio – decidem aos cerca de 15 anos de idade, compor música nova e diferente. O Apocalypse, no entanto, passou rápido dos festivais estudantis da Serra Gaúcha para os grandes eventos na capital do estado. Em 1988, a banda participa do maior festival de rock já realizado no Rio Grande do Sul, o I Circuito de Rock, organizado pela RBS TV, que reuniu mais de 14 mil pessoas na Usina do Gasômetro, segundo a Zero Hora da época. Com o show de lançamento do primeiro disco, um ano depois, firmam contrato com a gravadora francesa Musea, a mais reconhecida dentro do estilo da banda no mundo, o Apocalypse era e continua sendo a única banda brasileira de Rock Progressivo a ter trabalhado com a gravadora.

Mas o que é o Rock Progressivo? Para alguns especialistas brasileiros, como Jeferson de Araújo Oliveira, progrock trata-se de um erro de tradução do termo nascido na Inglaterra, no começo da década de 1970. Bandas de rock se formavam com músicos recém saídos de conservatórios ou mesmo da universidade, que misturavam o rock com altas doses de jazz e música erudita, muitos críticos de lá não tiveram dúvida em chamar o movimento de “Progressive Rock”, acontece que a palavra somente se parece com o “Progressivo” do português, mas quer dizer mesmo, em sua genealogia, progressista.

Simplificando, um rock progressista consistiria em bandas que apostam em álbuns conceituais, ou seja, desenvolvidos em torno de uma história central, muitas vezes as canções são separadas em cenas ou atos e com vozes de personagens em meio às letras. Um bom exemplo é o vocalista da primeira fase do Genesis, Peter Gabriel, que compôs a obra-prima da banda – o álbum de 1974 “The lamb lies down on Broadway” – baseado em sonhos que teve, interpretando-os de forma teatral no palco. Outro vocalista famoso pela expressividade é Fish do Marillion, reconhecido pela sua total entrega durante as apresentações e letras com tom bastante pessoal, imortalizadas no disco “Script for a Jester’s Tear”, de 1983.

É com base nestas influências musicais que o Apocalypse trabalha, resultando em composições mais complexas e longas, linhas de teclado em estilo sinfônico intercaladas com guitarras próximas ao hard rock. Tudo acompanhado por uma “cozinha” – bateria e baixo – inteligente explorando os compassos e a polirritmia.

Show de lançamento do DVD no Rio de Janeiro

Após o contrato com a gravadora na França, a banda ganha notoriedade com lançamentos de discos na Europa, conquistando espaço na mídia e uma posição de destaque pela crítica internacional de música progressiva. Não é à toa que a anunciada “maior banda brasileira de progrock” estava na coletânea “Le Melleur du Progressif Instrumental” da Musea e no ProgDay 99, o maior festival do gênero no mundo, lançando o primeiro cd duplo gravado ao vivo nos EUA por uma banda brasileira.

O Rock Progressivo nesta época era pouco conhecido no Rio Grande do Sul, antes do Apocalypse poucas bandas se dedicaram ao estilo, o maior nome dentre elas foi a banda pelotense Voo Livre nos anos 1980. Depois disso, o único nome com alguma visibilidade que pode ser citado é o Poços e Nuvens, grupo de Santa Maria ainda em atividade que mistura música tradicionalista com Prog.

A atmosfera que se formou em Porto Alegre nos anos 1980 instituiu o rock como símbolo da capital gaúcha, fazendo crescer o interesse do público por músicos que criassem música original com a devida assinatura local. Frank Jorge – produtor musical conhecido pelas participações como músico na Graforréia Xilarmônica, nos Cascavelletes e nos Cowboys Espirituais, entre outros – acredita que a cena revelou uma prepotência preocupante. A idéia de que o rock gaúcho era diferente e independente do produzido no restante do país deixou um rastro de soberba. Para ele, os músicos não rumaram para roteiros culturais de outros estados por acreditarem que a cena gaúcha era a melhor, estancando suas carreiras por aqui – cena musical que acabou se tornando auto-referencial e estéril.

Frank Jorge, músico e produtor musical

A formação de grupos de consumo musical na cidade, somada aos bares que surgiram ao redor dos bairros da juventude dessa época fecharam ainda mais o singelo circuito do rock gaúcho. Círculo recluso que acabou dificultando a visibilidade de bandas que não produzissem material com orientação parecida. Para o Apocalypse, que se filiava a um estilo com referência nas bandas européias da década anterior, ou seja, visivelmente diverso, a formação de um público apreciador fica bem mais complicada.

O contexto cultural se modifica a partir dos anos 1990. Segundo Eloy Fritsch, lentamente, as bandas dedicadas ao trabalho autoral perderam espaço e prestígio para versões e covers, é nesse período que o rótulo “alternativo” surge para caracterizar compositores que não fazem música pop. Fritsch afirma que a relação de bandas tidas como alternativas com a mídia tradicional permanece nos mesmos moldes há quase 30 anos: “Existe um tratamento diferenciado para artistas comerciais que têm verba para comprar espaço na mídia, e artistas que não têm ou não querem pagar por espaço, mas sim investir em sua formação”.

Imprensa local e a postura do Apocalypse

Para a produtora cultural Bebê Baumgarten, os meios de comunicação gaúchos, tradicionalmente considerados bairristas pelo público, estão na verdade mais preocupados com a vendagem do produto do que com o apoio ao desenvolvimento da cultura local. A atitude em nada ajuda para a formação de público para novos trabalhos já que, segundo ela, o problema é levar espectadores às salas de espetáculo: “Em Porto Alegre há uma vontade muito grande de tornar a cidade cosmopolita, mas as pessoas se comportam de maneira provinciana. O melhor programa para a classe média ainda é jantar em casa e ver um filme no DVD”.

Bebê Baumgarten, produtora cultural

Esta visão vai ao encontro da dificuldade de conseguir reconhecimento como produto cultural evidenciado por Eloy Fritsch, diante desses obstáculos, o tecladista afirma que o Apocalypse decidiu seguir pelo caminho da teimosia. Desde cedo, os integrantes além de se preocuparam com as rotinas de composições, estúdio e aprimoramento da técnica musical, também se dedicaram a estudar meios para produção e divulgação do próprio trabalho. Na opinião de Eloy, esse foi um dos fatores que permitiu com que o Apocalypse se mantivesse ativo por mais de duas décadas, na grande maioria das vezes sem apoio ou financiamento de qualquer entidade, contando apenas com os fãs que, espalhados pelo país, apóiam-lhes numa divulgação alternativa potencializada pela chegada da internet.

Essa “teimosia” foi ingrediente fundamental não apenas para que a visibilidade do trabalho fosse concretizada mas também para a união e o engajamento dos músicos. “O pessoal toca cover e fica só nisso, não tem um ideal de levar um projeto adiante, que possa fazer a diferença. Quando a gente formou o Apocalypse a ideia foi sempre essa: fazer uma música diferente dos outros. É algo que vale a pena continuar porque é algo que a gente acredita”.

Um caso que pode servir de exemplo é o último lançamento do grupo, um box-set em comemoração aos 25 anos de carreira que reúne um DVD gravado no Salão de Atos da UFRGS, em Porto Alegre, um CD inédito e outro de compilações, junto a um livro sobre a trajetória da banda. Para essa realização, contaram com investimento da Prefeitura da cidade natal, Caxias do Sul. Fritsch participou de um processo seletivo para premiação de bandas independentes, logo depois de o município ser eleito a capital brasileira da cultura, o auxílio para o projeto foi inicialmente negado, e somente um ano depois os organizadores voltaram atrás e concederam o prêmio à banda. Como o valor não era tão alto para possibilitar contratações, os integrantes tiveram de cuidar de toda a produção e divulgação, desde toda a parte gráfica da embalagem e dos álbuns, até a gravação do disco em estúdio próprio, além de editar as imagens do DVD que foi gravado pela TVE-RS, enfim, tudo ficou por conta deles.

Autoria e o esforço pelo vínculo social

Questionado sobre o momento atual da cena gaúcha, Eloy Fritsch afirma que as lógicas de mercado se mantêm as mesmas e que as novas gerações continuam sendo de intérpretes – “É um grande problema porque se a nossa terra não tem compositores, ou não estimula o trabalho autoral, não vai existir criação”. A cena onde se originaram os maiores nomes do rock gaúcho se modificou a tal ponto que, para ele, mesmo os grupos de considerável trajetória precisam se esforçar para adaptarem-se ao cenário e manterem-se ativos como músicos. Fritsch comenta o caso do Nenhum de Nós, banda que desde o ano passado vem apresentando versões de clássicos dos Beatles no lugar da produção de novas músicas.

Apocalypse em apresentação de 2007 no Festival Votorantim/Divulgação

Frank Jorge afirma que o panorama gaúcho se trata de uma boa cena musical, mas que é preciso relativizar a sentença “tem espaço para todo mundo”. Segundo ele, o fator mais importante é o esforço da banda para obter um vínculo social que lhe proporcione contatos e espaços. “Não basta ter um belo trabalho autoral, um bom disco, um bom show. Se você não tiver um leque diversificado de relações sociais, laços fracos e fortes para desenvolver possibilidades, seu belo trabalho autoral não sairá da gaveta de sua penteadeira, mesmo que nela caiba um montão de coisas”. Para isso, Bebê Baumgarten dá o exemplo da banda Apanhador Só: “A qualidade e a criatividade ainda são os grandes aliados. [Eles] Estão conseguindo bons espaços porque têm um trabalho autoral de qualidade, com letras posicionadas e poéticas, e shows com muito planejamento, além de campanhas e material gráfico bacanas”. Para o produtor e músico gaúcho, essa rede de contatos está em várias frentes, e é necessário ao artista se “esclarecer” para a sociedade: “São os jornalistas dos cadernos de cultura, os agenciadores de shows nos bares, os radialistas, quem desenvolve sites legais, são os caras de outras bandas que também estão começando.”

Eloy Fritsch, ao contrário dos produtores, é incisivo: afirma que toda a produção da banda, que conta com um número relevante de discos e DVDs, foi completamente independente, sem relação com as lógicas defendidas por promotores de eventos e produtores culturais. “A gente trabalha com muita paixão, não faz por dinheiro”.

Mas entre o amor e o sucesso está o mercado – com ímpeto tão coercitivo e ardiloso quanto possa ser uma atividade cultural na contemporaneidade, o mercado se impõe transformando desde os próprios autores até o que entendemos por obra de arte. A excitação proporcionada pela música, além de estar presente nos próprios compositores, também está ali, pulsando no meio do público e dos promotores de cultura. Cabe aos três atores deste cenário inventivo entender e articular a importância que deve ser dada ao esforço criativo de trabalhos como o do Apocalypse, comercialmente improváveis e artisticamente inovadores.

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