17 de set. de 2013

Histórias movidas pelo lixo

Por Arthur Wolff Hack

Fotos: Arthur Wolff Hack
Abrir sacolas. Separar. Plástico com plástico, vidro com vidro, metal com metal. Jogar no tonel certo. Outra sacola. Abrir. Separar. Jogar. Já faz 47 anos que dona Eva Saraiva convive com a rotina de quem é catador de lixo, quase metade dos seus 84. Foi assim, imersa nesse vaivém mecânico, que dona Eva criou os seus 18 filhos (10 biológicos e 8 adotados). E é assim que se sustenta até hoje. Ela trabalha na unidade de triagem Cavalhada, nome oficial do galpão gerido pela ASCAT – Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis do Loteamento Cavalhada –, e localizado às margens da Avenida Cavalhada, Zona Sul de Porto Alegre. Foi lá, entre tonéis de embalagens de alumínio, garrafas pet e caçambas de rejeito que me encontrei com ela.




“Entrevista, eu? Mas eu não tenho nada de importante na minha vida!” Foi assim, meio tímida mas sorrindo, que dona Eva respondeu ao ser interpelada pela primeira vez com a possibilidade de conceder uma entrevista a um estudante de Jornalismo. Apesar do início algo receoso, Eva logo desatou a contar as histórias da sua vida (que podem ser tudo menos não importantes). Contou que nasceu em Camaquã, mas que com três anos os pais se mudaram para São Jerônimo. Que lá começou a trabalhar desde criança cortando lenha e mato. Que se casou por lá e três anos depois veio para Guaíba, onde o marido recebera uma proposta de trabalho. Que de lá saíram para a Restinga os dois, para trabalhar numa chácara.

Cerca de seis caminhões por dia chegam na ASCAT para deixar cargas de lixo. Cada carga tem uma tonelada 

A história da ida para a Restinga (“que não era grande e desenvolvida como é hoje, só tinha chácaras lá”) se confunde com a própria história como catadora. Isto porque enquanto trabalhava seu marido sofreu um acidente: tropeçou enquanto corria atrás de uma vaca e bateu com a cabeça. Teve um derrame cerebral por conta do impacto. O problema dele deixou ambos sem emprego; sem ter onde morar e precisando cuidar do marido, Dona Eva acabou tomando conhecimento da Vila Cai Cai, que até então era localizada à beira do Guaíba, atrás do Estádio Beira-Rio. Lá, como não tinha outra alternativa de trabalho e precisava ser a provedora da casa, começou a catar lixo para sustentar a casa.

Os filhos ajudavam: os maiores selecionavam o material, enquanto que os menores ensacavam. São eles o grande orgulho de Dona Eva. Foram 10 biológicos, e mais oito que ela adotou, crianças que normalmente encontrava na rua, abandonadas. Talvez o caso mais emblemático seja o de João. Um dia, ela ouviu durante a noite barulho dos cachorros latindo. Foi ver o que era, e percebeu andando na rua um “vultinho”, um menino de oito anos. “Nunca vou me esquecer da primeira coisa que ele me falou: ‘Tu vai dar em mim?’ Aí eu respondi ‘não, eu não dou em criança. Eu tenho várias lá em casa’. Aí ele se encostou em mim, ficou à vontade”, conta. Naquele dia, algumas crianças haviam fugido da antiga Febem (atual fase), que fica do outro lado da Padre Cacique. Entre elas estava justamente João, que tinha sido abandonado pelos pais biológicos e assim acabou parando na instituição.

O caminhão chega, despeja as sacolas. Elas são abertas e é feita uma primeira seleção, separando os resíduos de forma mais geral: plástico, papel, metal etc. Depois, é feita uma triagem mais minuciosa, separando os materiais de forma mais específica: pet branco com pet branco, plástico verde com plástico verde, e assim por diante. O material, finalmente, é “encaixotado” para ser vendido 

“O meu maior orgulho é esse, é saber que todos que passaram pela minha mão estão bem. Não vejo sempre, mas sei que estão bem. Cresceram bem, saudáveis, têm suas próprias vidas e estão bem”, emociona-se. “O João agora trabalha em Salvador, tem família lá”, conta, sorrindo.

Após anos vivendo na Vila Cai Cai, um baque veio quando a Prefeitura anunciou os planos de remoção das famílias de lá. A ideia era revitalizar a orla do Guaíba, e para isso era necessária a retirada da Vila para o bairro Cavalhada. O que gerou muitos protestos; a Cavalhada, no coração da Zona Sul, fica muito mais longe do Centro que a antiga localização da Cai Cai, perto da Avenida Borges de Medeiros e da Ipiranga. Além disso, no novo loteamento não seriam permitidos carroças ou carrinhos, já que na Cavalhada os resíduos chegam pelo caminhão de coleta seletiva do DMLU – Departamento Municipal de Limpeza Urbana. Apesar dos protestos, a Vila acabou sendo removida, e os moradores reassentados para a Cavalhada. “Eu estou aqui desde o começo, e nunca saí. Os que vieram comigo saíram. Alguns até voltaram, mas eu fiquei”, explica dona Eva.

Além do galpão da ASCAT, há mais 17 unidades de triagem conveniadas com o DMLU 

 O marido de Dona Eva, responsável indiretamente por ela ter começado a catar lixo, morreu nas vésperas da mudança. Sentiu uma dor de cabeça e, de lá, foi para o hospital da Vila Nova. Nunca mais saiu da cama. Foi diagnosticado com câncer de pulmão e, após um mês internado, foi transferido para a Santa Casa, onde acabou falecendo três meses depois.

Para os moradores, a mudança de lugar acabou não sendo muito benéfica, mas Eva admite que se algo mudou para melhor foi a forma com que os catadores trabalham. Antes, era cada um por si: cada um pegava seu carrinho (ou carroça) e saía para catar o lixo. Não havia organização nem distribuição de tarefas. Em um galpão único para que todos trabalhassem, foi necessário reestruturar a forma de trabalhar. E o sentido de comunidade acaba adquirindo um sentido mais amplo. “O galpão era para todos. Porque todos teriam que trabalhar no mesmo espaço, um monte de gente que estava acostumada a trabalhar sozinha. Mas acabou sendo tranquilo, nunca deu briga. Eu digo que a única coisa que melhorou aqui foi o modo que a gente trabalha. Porque antes não tinha método, era cada um por si fazendo do jeito que achava melhor. Agora não, a gente trabalha direitinho, em equipe, e tudo dá certo.”, comenta.

Há dias em que se chega a 12 toneladas de lixo recebidas no galpão da ASCAT 

É justamente a procura pelo bem-estar da comunidade um dos três pilares que motivam a senhora de 84 anos a continuar fazendo o trabalho que faz. “Eu tenho três objetivos com o meu trabalho: o primeiro é me sustentar; o segundo é fazer um bem ao meio ambiente; e o terceiro é manter não só minha comunidade, mas toda a cidade limpa. Ou imaginas essa quantidade toda de lixo por aí, no centro da cidade? Qualquer chuvinha já ia alagar tudo. O nosso trabalho, meu e de todos os galpões de triagem, é um serviço de utilidade pública. Por isso mesmo, deveria ser mais valorizado pela prefeitura e pela sociedade.”

Gerar artefatos descartáveis é o que mantém a nossa sociedade voltada para o consumo. Gostar adquire outro sentido para quem trabalha com lixo. Afinal, quem optaria livremente por se sustentar assim se tivesse outra escolha? Mas é de lá que Dona Eva e muitas outras pessoas tiram seu sustento, e por isso ela afirma que gosta de trabalhar no lixo. “Com o galpão eu continuo trabalhando. Hoje, com 84 anos, eu não poderia sair por ai com um carrinho ou uma carroça catando lixo pela cidade. Mas assim eu consigo trabalhar. Às vezes passo mal, mas continuo trabalhando. Quando eu adoeço, peço para os meus filhos me deixarem trabalhar. Não dou tempinho do trabalho.” O trabalho, repetitivo, mecânico, pode até se repetir ao longo do tempo. As histórias, não.

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