23 de jul. de 2011

Cosplay: uma divertida arte de criar

Por Priscila Muzykant e Rafael Gonçalves 

O cosplay é uma prática que vem sido desenvolvida principalmente por adolescentes e jovens, suscitando questionamentos sobre as suas motivações e modo de caracterização de personagens. Nos dias 14 e 15 de maio foi realizado o 14º AnimeXtreme, no colégio La Salle São João na capital gaúcha, reunindo mais de 10 mil visitantes, com a presença de cosplayers que participaram de variadas competições. Ao conhecer diversos cosplayers, foi possível perceber o entusiasmo, a diversão e a criatividade com que os mesmos desenvolvem essa atividade.

O escape e o distanciamento da realidade social são fatores recorrentes para a prática do cosplay/ Priscila Muzykant e Rafael Gonçalves


O cosplay originou-se na década de 1940, nos Estados Unidos, onde pessoas aficionadas por quadrinhos se reuniam e se caracterizavam com trajes de seus personagens favoritos. Sujeitos identificados com as séries e filmes “Jornada nas Estrelas” e “Star Trek” passaram a se vestir como os personagens das séries em meados da década de 1970. Posteriormente, um japonês toma conhecimento dessa prática e a introduz no Japão nos anos 1980 e 1990 como uma forma de promoção de histórias em quadrinhos e desenhos animados, apresentando objetivos de cunho comercial. Depois, essa prática chega ao Brasil, advinda do boom da cultura japonesa no país nos anos 1990, segundo a Mestre em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Janete Oliveira. 

Características do cosplay japonês

“A cultura japonesa encontra-se amplamente divulgada e vinculada à Internet, aos animes (desenhos animados) que passam na televisão e aos jogos de computador, o que faz com que mais jovens a conheçam e se interessem pela prática do cosplay”, considera Janete Oliveira. Quando há a participação em um evento de cosplay, o indivíduo vive por instantes uma realidade que não é a sua. 

No caso específico do cosplay japonês, são vivenciados momentos de uma sociedade muito distinta da ocidental. Por isso, a transposição de rotinas é uma marca do cosplay, também possibilitando que as pessoas experimentem dramas de personagens que divergem das suas experiências pessoais. “Você não quer viver na sociedade em que você está agora, você quer outra na qual possa ter outras experiências. Seria uma alternativa a uma sociedade na qual você não está totalmente adaptado”, explica a pesquisadora carioca. 

Diferenças entre os cosplays oriental e ocidental

Os cosplayers orientais desenvolvem as caracterizações com um intuito majoritariamente comercial, pretendendo a divulgação de personagens e produtos. Já no ocidente, os cosplayers realizam a prática principalmente como uma opção de entretenimento e diversão, distinguindo os eventos da conotação presente no oriente. “A cultura do entretenimento, a cultura pop, hoje em dia tem um espaço muito maior para ser divulgada. Assim, você está em permanente contato com o que está acontecendo na cultura de entretenimento no mundo todo e as pessoas são influenciadas, viram fãs. Os meios de entretenimento são os principais focos de influência com relação a qualquer tipo de cultura estrangeira”, pondera a pesquisadora. 

Competições de destaque no cosplay

Os cosplayers realizam suas caracterizações, não só pela diversão, mas também para a participação em competições regionais, nacionais e mundiais. O AnimeXtreme é realizado duas vezes ao ano no RS e é o maior evento do Sul do Brasil no que diz respeito a encontros de pessoas que apreciam animes, mangás, cosplay e filmes. 

Nos dias de evento, são realizados desfiles de cosplayers, apresentações individuais ou em grupo e palestras reunindo personalidades relacionadas a essas atividades (especialmente dubladores). Há, ainda, palcos onde se realizam shows com bandas que tocam trilhas de animes. 

O Circuito Gaúcho de Cosplay (CGC) surgiu em 2008, e realiza uma de suas etapas dentro do Animextreme. A disputa desse concurso ocorre em duplas e contando com apresentações de 15 minutos com dois personagens obrigatoriamente do mesmo anime, mangá ou filme. São realizadas diversas etapas ao longo do ano em várias cidades do Rio Grande do Sul como Bagé, Pelotas e Porto Alegre. 

O Yamato Cosplay Cup (YCC) é um concurso nacional, realizado desde 2007 e que reúne participantes do Brasil inteiro. No ano seguinte, ganhou uma versão internacional, com a participação de mais de 13 países de toda a América Latina, além do Brasil. O evento mais importante na cultura cosplay é o World Cosplay Summit (WCS), que reúne os principais cosplayers de todo o mundo há mais de dez anos e que tem por finalidade também ser um espaço que permite a troca de experiências entre as diversas culturas. O WCS é um evento anual organizado pela TV Aichi, uma emissora japonesa, afiliada da TV Tokyo.


O 14º AnimeXtreme ocorreu nos dias 14 e 15 de maio no colégio La Salle São João e reuniu mais de 10 mil visitantes/ Priscila Muzykant e Rafael Gonçalves
Afetividade do cosplayer com o personagem 
A estudante Débora Monteiro Brito, 22 anos, faz cosplay desde 2005 e desenvolveu para o AnimeXtreme a performance de Morrigan, personagem do jogo Dark Stalkers, que é um tipo de demônio e rainha do inferno. “A Morrigan é minha personagem favorita, inclusive eu compro bonequinhos para deixar expostos no meu quarto, eu tenho mais de dezesseis bonecas dela”, fala Débora. A cosplayer afirma ainda que é fundamental gostar e conhecer muito a história do personagem, além de ter apreço por costura, visto que a confecção do próprio figurino é bastante frequente entre os adeptos da atividade.

Débora Brito diz que o processo de confecção do figurino demanda observação minuciosa do personagem/ Priscila Muzykant e Rafael Gonçalves

“Quando penso em cosplay me vem uma frase: É ser quem tu gostaria por um dia. Eu sou uma pessoa super tímida e para chegar aqui e fazer a Morrigan não posso ter vergonha, tenho que fazer a pose dela. É ser um personagem que tu goste, invente e interprete por um dia”, reflete Débora. A socialização é também uma das vantagens apontadas por Débora ao praticar o cosplay: “Além de ter um personagem por um dia, o lado bom é conhecer pessoas, elas vêm falar contigo. Geralmente a gente faz muitos amigos nesse processo. Inclusive há vários amigos que andam comigo aqui pelo evento”. 

Motivações para a prática do cosplay 
Segundo a psicóloga Luciana Wickert, a brincadeira de ser uma outra pessoa, de divertir-se e de interpretar outra personalidade são freqüentemente fatores apontados como motivadores para a caracterização. “É como se a pessoa levasse para a vida adulta uma brincadeira infantil, pois certas brincadeiras não são permitidas na vida adulta. Porém, mesmo que tenha toda uma gama de preconceitos, essa é uma brincadeira permitida. Há um grupo que se pode encontrar para discutir isso”, afirma a psicóloga. 

Outra questão apontada pela psicóloga é que o comportamento de jovens pode propiciar ao desenvolvimento de atividades como o cosplay, pois hoje há possibilidades de diferenciação que em outros momentos eram inexistentes. 

Traçar um perfil ou um conjunto de características presentes em cosplayers é considerada uma medida reducionista, pois há a possibilidade de haver, por exemplo, pessoas que fazem isso para esconder uma timidez, como também ser uma prática de alguém que simplesmente escutou de um amigo que é algo legal, fala Luciana. 

O exercício de sublimação e de escape da realidade por algumas horas com o cosplay pode oferecer prazer e uma qualidade de vida maior ao sujeito, segundo Luciana Wickert. Entretanto, se o cosplayer passar a tomar os momentos de caracterização como algo efetivamente real para fugir de dificuldades de sua própria vida, há um problema de ordem psicológica que precisa ser tratado. “Os jovens atuais são muito solitários e encontram dificuldades em contar com o outro. Então, o movimento cosplay pode ser um apoio, uma forma de encontrar um grupo a inserir-se, a lhe oferecer marcos de existência, pois o jovem contemporâneo é extremamente carente”, explica a psicóloga.


A escolha por determinados personagens normalmente relaciona-se às emoções e características pessoais dos cosplayers/ Priscila Muzykant e Rafael Gonçalves


A cosplayer Camila da Costa tem 24 anos e assume a performance de Saori, reencarnação da deusa Atena, dos Cavaleiros do Zodíaco. A personagem tem a missão de manter a paz na Terra. Segundo Camila, sua admiração por Atena advém de sua característica pacificadora na história. “Ela não luta, mas está sempre ajudando, fazendo orações, se sacrificando em prol deles. Uma mensagem legal para passar”, explica Camila. A cosplayer já participou de competições em Bagé, Pelotas e Porto Alegre e acredita que para compor um personagem é preciso ter paixão, pois mesmo com uma caracterização impecável em relação à vestimenta, o cosplayer não alcançará um resultado satisfatório se não gostar efetivamente de seu personagem.


Camila da Costa afirma que a identificação com o personagem é algo importante para uma boa composição/ Priscila Muzykant e Rafael Gonçalves

Atualmente, a sociedade do consumo, do entretenimento e da busca pelo prazer tem como verbo principal o “parecer”. “Houve uma transformação verbal do ser e do ter para o parecer como marcador social”, opina Luciana Wickert. No romance Madame Bovary, do escritor francês Émile Zola, a personagem principal Emma Bovary é uma leitora burguesa culta que vive uma vida amargurada e infeliz por conta de frustrações amorosas, o que a leva a se passar por uma das personagens de suas leituras e viver uma outra vida, sonhando com uma nova paixão e a vivendo intensamente, sem distinção entre o onírico e a realidade. O pensador francês Edgar Morin denominará essa relação de duplos, ou seja, uma mistura simbiótica entre o real e o imaginário, em que não se pode distinguir onde começa um e termina o outro. Não se sabe até onde estamos lidando com a leitora burguesa, e onde começa a personalidade da heroína romancista, Emma Bovary. Nesse sentido, a atividade dos cosplayers surge como atividade lúdica, assim como jogos ou atividades esportivas, onde o indivíduo atinja o prazer em meio a uma realidade frustrada, buscando realizar práticas que fujam de uma rotina tediosa. 

De acordo com o pesquisador em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Carlos Adriano Sippert as pessoas vivem praticamente o tempo todo caracterizadas como personagens. Assim, o modo como os indivíduos se vestem, falam e se apresentam frente aos outros acaba por delimitar o personagem que se chama de “eu”. “A prática do cosplay possibilita que esse sujeito, muitas vezes sufocado por esse personagem que se chama de “eu”, experimente no olhar do outro uma nova forma de se apresentar”, explica Sippert. 

Para o pesquisador, o cosplay adquire seu sentido no momento em que encontra uma inserção na cultura, sendo contrário ao ideário de que um individualismo exacerbado poderia ser um fator determinante para motivar alguém a praticar essa atividade. “Sem a existência de uma outra pessoa para reconhecer o cosplayer enquanto aquele personagem que ele veste e brinca ser, a prática perde seu principal fundamento”, afirma Sippert. 

O processo de criação intrínseco à prática de cosplay incita o indivíduo a projetar no personagem algo que ele próprio gostaria de ser. Essa atividade é saudável enquanto existirem frustrações, visto que a mesma indica que aquilo encontra-se na dimensão da dúvida, da incerteza, fazendo com que o cosplayer tenha a consciência de que não é o personagem. “Freud já dizia: “nós construímos castelos, os loucos moram neles”. Nós construímos a realidade em que habitamos, mas sempre colocada em dúvida”, reflete o pesquisador. 

Carlos Adriano Sippert acredita que os meios eletrônicos, jogos, desenhos e seus conteúdos são uma conseqüência e não uma causa do comportamento dos jovens hoje em dia. “Se todo esse material não falasse de alguma forma deles, com eles e para eles, isso simplesmente não existiria. Os animes e os jogos não formam criminosos”, opina o pesquisador. Esses conteúdos permitem que o que é existente no meio social apareça de uma forma discursiva, na construção de uma fantasia. 

O pesquisador analisa que a criação de estereótipos seria a manifestação negativa do cosplay. Isso se dá pelo motivo de que os estereótipos também passam pela tentativa de construção e solidificação na maneira de colocar-se frente ao outro. Conforme Sippert, isso influencia no comportamento dos jovens e dos adultos, pois há uma tentativa incessante de marcar um modo de existência, ressaltando, freqüentemente, a diferença em relação ao outro. 

O estudante Victor Gyurkovitz, 16 anos, pratica cosplay há dois anos e esteve presente no 14º AnimeXtreme. Victor faz o cosplay do personagem Chapeleiro Maluco do filme Alice no País das Maravilhas. O estudante conta que identificou-se com o personagem de Johnny Deep e que teve o incentivo de seus pais e amigos para fazer a caracterização. O processo de incorporação do personagem demanda desde a confecção cuidadosa do figurino e dos acessórios até uma atitude interpretativa e teatral por parte do cosplayer. “Esse ano estou tentando um pouco mais de desenvoltura, não só a caracterização. Eu fiz a produção da roupa com uma costureira conhecida. O chapéu foi o que mais deu trabalho. Na verdade, tem que ter muita confiança na pessoa que vai fazer, a pessoa tem que se envolver junto, que foi o que essa mulher fez comigo, tanto que ela pegava as fotos e via detalhes que nem eu mesmo via, então ela entrou na brincadeira”, explica Victor, que já participou de desfile de cosplay em evento do AnimeXtreme no colégio La Salle Canoas, onde conquistou o segundo lugar.


“Ganho o dia quando alguém pede para fazer uma foto minha quando estou caracterizado”, diz Victor/ Priscila Muzykant e Rafael Gonçalves

É bastante freqüente o cosplayer apresentar uma afetividade para com o seu personagem, sendo um dos fatores de maior motivação para que essas pessoas realizem a caracterização e a performance. “Eu acho que o cosplay que a pessoa faz é uma forma de expor o que ela tem por dentro, a criança que ela tem por dentro. Então, vamos dizer que é um sonho que eu já tive, de me caracterizar ou fazer um personagem de algum filme. Coube a calhar direitinho, pois o filme trata disso e é um personagem que eu gostei, então fica perfeito”, reflete o cosplayer Victor. 

A construção de um personagem pode dar-se por meio de uma caracterização externa, através de figurinos, acessórios e maquiagem. Contudo, esse é apenas um dos recursos a serem explorados, de forma que a construção de personagem pode principalmente dar-se por uma via corporal, conforme explica o ator, diretor e professor de teatro e música do Teatro Escola Porto Alegre (TEPA) Adriano Basegio. “Em relação ao cosplay, eu entendo que a pessoa que vai escolher um personagem tem uma identificação estética com essa figura, atraindo-se pelas roupas ou por uma identidade em termos psicológicos. A partir desse personagem é possível revelar aspectos que têm a ver com a própria pessoa”, reflete Basegio. 

A teatralidade presente no cosplay 
Adriano Basegio afirma que o teatro e o cosplay apresentam objetivos totalmente distintos. O professor acredita que a construção de personagens no cosplay ocorre de uma maneira mais superficial comparativamente ao teatro, visto que o processo se dá primeiramente a partir de algo externo, pelas roupas e adereços, e não partindo de uma construção psicológica. Então, é a partir disso que vão se desenvolver aspectos comportamentais que se aproximam do personagem e do desejo do cosplayer em vivenciar por momentos uma personalidade diferenciada. 

O ator ressalta que o objetivo definido inicialmente no processo de construção de personagem teatral é a concretização de um espetáculo, onde os personagens estarão inseridos em um contexto interpretativo pré-estabelecido e com um objetivo definido. Em contrapartida, no cosplay a construção performática é realizada mais por uma motivação pessoal e individualista do sujeito, não apresentando a intenção de chegar a um produto final específico. 

Pode-se dizer que o teatro é formado por uma estrutura piramidal composta por personagem, ator e público. “Entre o ator e o personagem há o objetivo de atingir o público com o enredo desenvolvido em um espetáculo. Em contrapartida, no cosplay não há necessariamente a intenção de atingir o público, pois não há público direto ou específico. Isso está diluído no meio do jogo. O cosplay para mim é um jogo”, opina Adriano Basegio. 

O cosplay está muito mais atrelado a um jogo dramático do que a um jogo teatral. “O jogo teatral é quando o foco está no produto, quando se vai montar um espetáculo, tanto é que com crianças comumente não se faz jogo teatral, se trabalha a estrutura do jogo dramático, que está muito relacionado com o jogo simbólico do faz de conta. O jogo dramático é mais aberto, está preocupado com o processo, em como as coisas se darão”, explicita o professor de teatro. Outra diferença crucial apontada por Basegio é a presença de figurino para a composição performática. O figurino é um recurso importante, mas não decisivo na composição de uma figura dramática. O aspecto mais relevante nesse processo é apropriar-se de uma corporeidade, que não necessariamente advém de um figurino ou adereço. 

A dublagem é, também, um recurso importante na composição performática. No evento AnimeXtreme, esteve presente o dublador Sílvio Navas, que tem 50 anos de experiência com dublagens e 55 anos como artista. Gómez Addams, Papai Smurf, Darth Vader e Mumm-Ra, o vilão do desenho Thundercats, são alguns dos personagens de maior destaque no trabalho do dublador. 

Sílvio Navas afirma que um dos fatores mais importantes nessa prática é fazer a interpretação de um personagem com vontade e sentimento para alegrar as pessoas e fazê-las se identificarem com seus desenhos preferidos. “O que me deixa mais contente é receber de volta esse esforço com o reconhecimento das pessoas pelo meu trabalho”, diz Navas. O artista também ressalta que a criação de bordões, palavras ou pequenas frases que remetem automaticamente a um determinado ícone e que acabam por ser uma marca do mesmo são essenciais para a identificação do público para com um personagem. 

Hoje em dia, a prática de cosplay vem obtendo uma maior divulgação pelos meios de comunicação, embora nem sempre seja feita da melhor maneira. Júlia Simão e Igor Melo, caracterizados como Welma e Fred do Scooby Doo para o 14º AnimeXtreme, pensam dessa forma e ainda fazem uma observação: “ Cosplay é como jogar bola, um tipo de diversão, deveria ser tratado mais assim, desse jeito”, opina Júlia.


O universo cosplay não se restringe somente a animes e mangás. Também há espaço para desenhos clássicos de várias gerações, como o Scooby Doo/ Priscila Muzykant e Rafael Gonçalves

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